107/21: esta é a conta que deve ser feita para determinar a média de casos registrados, consumados ou não, de feminicídio no Brasil apenas neste ano de 2019, segundo levantamento do jornal O Globo. A título de definição, o crime em questão é o nome dado para um tipo de homicídio específico: o de mulheres. E em um contexto tão delicado e devastador quanto este vivido em nosso país, as primeiras exibições dos longas Trágicas e Tremor Iê, no quinto dia (ontem, 22) da Mostra de Tiradentes, não poderiam ter ocorrido em um momento mais propício para levantar os debates propostos por ambos os títulos.
Isto porque ambas as obras, por meio de óticas totalmente distintas, colocaram em pauta na grande roda de debates e propostas que é o festival mineiro, primeiro evento cinematográfico do calendário nacional, a agravada situação de risco vivida pelas mulheres no Brasil. No docudrama de Aída Marques, Trágicas, que disputa o troféu principal da mostra "Olhos Livres", a realizadora fluminense procura uma mescla entre o teatro grego e a realidade para traçar um paralelo entre figuras como Antígona, Electra e Medeia — peças encenadas no filme pela atriz Gisela de Castro — com as mulheres atuais (leia a crítica do AdoroCinema).
O longa, que foi recebido com solidez pelo público presente na Cine-Tenda, busca declarar que, assim como as criações de Sófocles e Eurípides, as figuras femininas contemporâneas também sofrem por destinos impostos pela violência dos homens. Da mesma forma como Antígona luta para enterrar seu irmão, Polinices, Marques colhe, por exemplo, dois testemunhos de brasileiras cujos irmãos foram assassinados durante o regime ditatorial das décadas de 60 e 70, mas seus restos mortais seguem desaparecidos.
Os relatos que compõem este documentário que pretende alcançar a experimentação teatral são, portanto, duríssimos, porém mais "relevantes do que nunca", como declarou de Castro em seu discurso prévio à exibição de Trágicas. Como boa parte da trama resgata as vozes de mães que perderam seus filhos para a brutalidade do abuso de poder policial no estado do Rio de Janeiro — hoje marcado pela falência do projeto das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) —, a atriz criticou o recém-empossado governador do RJ, Wilson Witzel (PSL), relembrando que, após sua vitória no pleito contra o ex-prefeito carioca Eduardo Paes (DEM), o ex-juiz federal defendeu que a polícia tivesse autorização para "atirar para matar".
Tal política de tolerância zero no âmbito da segurança é radicalizada ao extremo pelo drama de ficção científica Tremor Iê, mais aplaudido e comemorado longa até agora pelos espectadores que lotaram a segunda sessão de ontem da Cine-Tenda. Na disputa pelo prêmio da Mostra Aurora — a principal seção competitiva do festival mineiro foi inaugurada na segunda-feira, dia 21, pela pré-estreia de Seus Ossos e Seus Olhos —, a produção cearense pega a contramão do docudrama de Marques e foca na resistência promovida pelo movimento feminista nacional, sobretudo negro e LGBTQ, ressaltando a força de sua união e sororidade, suas pautas progressistas e seu caráter contestador ao establishment brasileiro.
A projeção foi extremamente celebrada porque este filme acumula ainda mais uma camada de relevância para além de seu predecessor: enquanto Trágicas analisa violências do passado e/ou estrangeiras — não menos brutais ou dolorosas, diga-se de passagem —, Tremor Iê (confira a avaliação do AdoroCinema) imagina um futuro distópico tecendo um comentário agudo não só sobre a atual condição dos direitos das mulheres no Brasil, como também acerca do presente e caótico momento do Ceará. Desde o dia 2 de janeiro, o estado nordestino é palco de uma verdadeira bárbarie: mais de 237 ataques criminosos, promovidos por facções de narcotraficantes, atingiram pelo menos 50 cidades cearenses.
Celebrando a periferia, o empoderamento e suas manifestações artísticas populares, o filme traz uma grande influência da música em busca do principal objetivo das diretoras Elena Meirelles e Lívia de Paiva: reconhecer a relevância de necessáris pautas identitárias e sociais que foram esquecidas, marginalizadas e silenciadas. "O filtro das escolhas das histórias foi pensado como forma de denúncia, mas muito mais como cura [...] A violência muda de cara, mas permanece", ressaltaram as cineastas, formulando uma ideia que foi mais do que bem absorvida pelo público, em duas rodadas de aplauso. Tremor Iê vencerá o troféu do júri popular? Resta aguardar até o fim da Mostra de Tiradentes, que se encerra no próximo sábado, 26.