Assim como aconteceu com a Mostra Olhos Livres, a Mostra Aurora, principal seção competitiva da Mostra de Tiradentes, também abriu seus trabalhos com aquele que é, por enquanto, o competidor a ser batido. Estabelecendo um altíssimo nível de cinema, o intrincado Seus Ossos e Seus Olhos, segundo longa-metragem do diretor, roteirista, montador e ator Caetano Gotardo (O Que Se Move), desafiou o público presente ontem, dia 21, na Cine-Tenda da 22ª edição do festival mineiro. Debaixo da forte tempestade que castigou Tiradentes, o drama recompensou aqueles que embarcaram na proposta com uma narrativa complexa e de múltiplas camadas que busca compreender aspectos da atual crise brasileira.
Originalmente concebido em 2009 como um desdobramento da pesquisa realizada para o curta-metragem O Menino Japonês, o drama intimista, que segue os passos do cineasta João (Gotardo), pode ter demorado a sair do papel, mas os 9 anos que separam o nascimento da ideia da concretização em si de Seus Ossos e Seus Olhos foram cruciais para seu desenvolvimento, indicou o realizador capixaba: "Esse tempo fez muito parte do que é o filme. Não foi um projeto que deixei de lado e que depois retomei e não foi um projeto para o qual tentamos financiamento e não conseguimos. É um projeto que tava o tempo todo muito presente na minha vida".
Apelidado como um filme que é "um pouco como a vida" pela produtora Lara Lima e descrito como um longa sobre "estar no mundo" pelo cineasta, a obra, no entanto, só veio a ganhar um corpo definitivo pouquíssimo tempo antes das gravações: "A gente decidiu que íamos fazer e, na verdade, o primeiro roteiro inteiro ficou pronto duas semanas antes da filmagem. Então tem essa natureza muito maluca [...] Filmamos em oito dias com uma equipe de 6 pessoas e 7 atores e com uma concentração absoluta", ressaltou Gotardo, em conversa com o público na sessão de debates após a exibição de Seus Ossos e Seus Olhos, ocorrida na manhã desta terça-feira, dia 22, no auditório do Centro Cultural Yves Alves.
Trazendo intensos diálogos recheados de ideais sobre as relações entre palavra, memória e corpo — três temas que não só marcam com afinco a edição 2019 da Mostra de Tiradentes, como também são muito relevantes para pensar o Brasil atual, um país que encontra severos problemas de comunicação e de preservação de sua história, como prova o recente e trágico incêndio do Museu Nacional —, o drama rodado em São Paulo recebeu 4,5 estrelas na crítica do AdoroCinema (leia o texto completo, com spoilers, aqui): "Empregando a sutileza e a delicadeza como suas "armas" de maior impacto, Seus Ossos e Seus Olhos abre questionamentos que prometem ecoar por bastante tempo na cabeça do espectador".
Essas qualidades são refletidas e potencializadas pelo sensível e formidável trabalho do elenco liderado pelo próprio realizador, um diretor exigente e muito preciso em seus comandos e desígnios, revelaram os atores, particularmente acerca do aspecto corporal do longa: "Tínhamos marcações de cena bem severa de corpos. A gente sabia exatamente a hora de deitar, para onde trocar de posição, qual era a próxima posição. Foi tudo bem marcado, quase uma coreografia, junto com aquela massa de palavras [...] Não é um fluxo que você se entrega e vai na emoção do momento. É um trabalho constante, muito mental também do ator, você tem que estar engajado na presença e na memória", afirmou a atriz Malu Galli.
Apesar dos desafios físicos e do rigor estético, também explorado no âmbito visual de Seus Ossos e Seus Olhos, todos os atores elogiaram o processo de trabalho de Gotardo, definindo-o como "estimulante". O diretor, aliás, ainda aproveitou a ocasião para debater sobre sua própria performance no drama, um dos pontos altos da projeção: "Esse filme é claramente uma pesquisa de um diretor, roteirista, montador e ator, tudo muito misturado assim [...] Nunca cogitei a possibilidade de chamar outra pessoa para esse personagem porque a natureza do filme estava aí também", uma essência que, a propósito, só reforça a presença do diretor atuando como um ator dentro da sinuosa e poética estrutura deste longa-metragem.
Já o filme que antecedeu a estreia de Seus Ossos e Seus Olhos, enfrentando o auge da chuva de ontem, não teve a mesma sorte, no entanto. Longa de estreia de Jean Santos, baseado no curta homônimo, Superpina: Gostoso É Quando a Gente Faz! foi recebido com pouquíssimo entusiasmo pelo público. Disputando o prêmio de campeão da mostra Olhos Livres contra o elogiado Tragam-me a Cabeça de Carmen M., a comédia falhou em cativar o público com suas gags bizarras e sua temática confusa sobre a ideia de amor livre. "No fim das contas, para além de suas diversões pueris, há um filme ousado dentro de Superpina: ele só não consegue se libertar de suas contraditórias amarras", define nossa crítica.