De meados dos anos 1990 para cá, devido às leis de fomento à produção audiovisual, o Brasil finalmente ergueu-se das cinzas da Embrafilme, órgão que comandava a sétima arte no país, para adentrar o período de renascimento do nosso cinema, a famosa Retomada. Os filmes realizados nos últimos 19 anos, no entanto, tiveram como denominador comum o eixo Rio-São Paulo; já o Sul, o restante do Sudeste e o Nordeste conquistaram seus espaços mais recentemente. Mas e o Centro-Oeste e o Norte? No caso desta última região, ao menos, o documentário Empate provou ontem, 19, em pleno Largo das Forras, palco da tela Cine-Praça da Mostra de Tiradentes, que o cinema amazônico está vivo e é muito forte.
Inteiramente produzido e rodado no Acre, o longa de Sérgio de Carvalho traz uma análise interna de um dos embates mais trágicos de todo o território nacional: o conflito por terras na região do Xapuri, localizado no Acre e na Floresta Amazônica, entre posseiros e seringueiros (aqueles que ocupam as terras e nelas vivem) e os fazendeiros locais (aqueles que as desejam desmatar para aumentar seus gados). Resgatando a memória do ambientalista Chico Mendes, assassinado há 30 anos por agropecuaristas, Empate explora as atuais lutas dos companheiros do ativista ecológico e lança luz sobre estes personagens, que compõem uma parcela historicamente subrepresentada e marginalizada do Brasil na mídia.
Para além de preservar os ideais propagados por Mendes para o futuro, o filme ainda é uma plataforma que dá voz a estes trabalhadores que seguem perdendo espaço para os interesses da indústria do desmatamento, que acabou com mais de 5 mil hectares de floresta entre 2016 e 2018. No entanto, mais do que fielmente retratar uma resistência histórica através dos "empates" — estratégia idealizada por Mendes que consiste em formar cordões humanos para proteger a mata —, o documentário também encapsula o atual panorama nacional: "O que está acontecendo no Acre é uma pequena área de estudo do que está acontecendo no Brasil", declarou a roteirista Beth Formaggini, durante o debate pós-sessão de Empate.
Assim, por mais que tenha como foco o recrudescimento da violência no campo — apesar da ínfima diminuição dos números de mortes causadas por conflitos agrários no ano passado, os líderes dos movimentos sociais locais tornaram-se ainda mais visados (via G1) —, o documentário também escancara as polarizações, contradições, conflitos e crises em que o Brasil está mergulhado, segundo o cineasta. Isso ficou ainda mais evidente quando um homem, visivelmente alterado, dirigiu-se aos posseiros na tela com xingamentos e palavrões, afastando-se do Largo das Forras reafirmando o seguinte sobre si mesmo, aos gritos: "Eu sou fascista". Os espectadores rebateram a manifestação com sonoras vaias.
Por fim, o realizador ainda confessou à plateia que sentiu certo receio de sofrer represálias por incluir as cartelas ao fim de Empate, que recontam em palavras os acontecimentos que sucedem os eventos demonstrados no documentário, incluindo a perda de terras por parte de alguns dos personagens do filme para grandes fazendeiros. No encerramento, antes dos créditos finais, o longa aponta como os novos governos eleitos no ano passado — tanto do Acre, como do Brasil, agora comandados por Gladson Cameli (PP) e Jair Bolsonaro (PSL), respectivamente — podem agravar os conflitos agrários em decorrência de seus apoios declarados ao fomento da indústria agropecuária.
"Ninguém solta a mão de ninguém e 'vambora', vamos fazer arte que esse é o nosso papel", finalizou de Carvalho, em mais uma quente noite na Mostra de Tiradentes 2019, onde os corpos destes brasileiros do Norte brillharam, seguindo a temática de incentivo à diversidade da 22ª edição do evento mineiro, principal guia dos debates que aqui ocorrem e da ampla programação do festival, que segue em cartaz até o próximo sábado, dia 26. Por sua vez, o documentário, que fez sua pré-estreia nacional em Tiradentes, ainda não tem previsão de estreia no circuito comercial — confira aqui a crítica 3,5 estrelas do AdoroCinema acerca de Empate.