Incapaz de retomar a audiência que perdeu no decorrer dos anos e atormentado pela morte da esposa, um jornalista da velha guarda, âncora de um anteriormente prestigiado noticiário, anuncia que irá tirar a própria vida ao vivo. Ele não concretiza o plano, no entanto, porque a gananciosa emissora decide se apropriar da espontaneidade desesperada de Howard Beale (Peter Finch) em um arauto do apocalipse. Esta é a base do clássico Rede de Intrigas, sátira trágica que mantém status de obra profética há mais de 40 anos.
Mas o motivo para que uma das obras-primas de Sidney Lumet — um dos mais importantes, consistentes, melhores e, infelizmente, subestimados diretores de Hollywood — tenha sido escolhida para dar o pontapé inicial na temporada 2019 da Tirando o Mofo não é o mesmo de sempre quando o assunto é Network (título original). A moeda, evidentemente, é a mesma, mas preferimos olhar as coisas por outro ângulo: Rede de Intrigas é o primeiro filme que você precisa ver em 2019 porque, atualmente, soa como um documentário.
Reza a lenda que, em 2005, George Clooney, recentemente estabelecido na carreira de diretor e produtor para além de sua trajetória como astro de Hollywood, teve a ideia de refilmar Rede de Intrigas como um telefilme. Para testar o apelo da trama, brilhantemente escrita por Paddy Chayefsky, o ator reuniu um grupo de jovens e adolescentes para uma exibição-teste, confiante de que a potência do longa não havia se esgotado. O que aconteceu, entretanto, descartou o desejo de Clooney pelo projeto.
Quando terminaram de assistir ao drama, os jovens membros da plateia não mostraram sinal algum de afetação: duas das mais insanas e ferozes horas já produzidas na sétima arte dos anos 1970 não causaram impacto algum. O motivo? Todos os espectadores já haviam visto muitos Howard Beales antes de conhecerem o original: a sátira que Rede de Intrigas desenhou, um conto de advertência profético, tornou-se a nossa própria realidade.
No episódio dedicado à análise do filme, os criadores do podcast Show Me the Meaning (Me mostre o significado, em tradução livre) subvertem a famosa equação do filósofo Karl Marx. Assim, no mundo de Rede Intrigas — e no nosso —, a História não ocorre primeiro como tragédia para depois se repetir como farsa; a História, na verdade, aconteceria primeiro como sátira para depois se passar novamente como realidade — e do tipo mais cínico.
A sensual, obstinada e inescrupulosa Diana Christensen, personagem da genial Faye Dunaway, representa a geração que, em meados dos anos 1970, enxergou uma oportunidade para criar uma máquina de dólares. Em um país assolado pelas consequências psicológicas de eventos traumáticos como a Guerra do Vietnã, o escândalo Watergate, a escalada da criminalidade e da violência nos principais centros urbanos em decorrência do tráfico de drogas, e a inflação galopante, entre outros fatores, havia terreno fértil para que o descontentamento e a depressão de uma nação fossem articulados em forma de entretenimento sensacionalista.
É evidente que o sensacionalismo na mídia não foi uma invenção dos anos 70: afinal, desde antes do estabelecimento da imprensa, como aponta o historiador Robert Darnton, já existiam sementes do que hoje conhecemos como fake news, por exemplo. A diferença é que em um meio como a televisão, presente em milhões de lares Estados Unidos afora, a potência da mídia de choque seria naturalmente ampliada. Ler sobre uma brutal batida de carros é impactante, mas ver causa uma comoção de outro nível. Se uma foto vale mais do que mil palavras, o que dizer do vídeo de um assassinato ou de um assalto à banco, filmado pela própria gangue responsável pelo crime?
Entra, então, Howard Beale. Sobretudo, o que separa Rede de Intrigas de outros longas que também denunciam o sensacionalismo midiático — como os excelentes A Embriaguez do Sucesso ou O Abutre — é o âncora vivido por Finch, papel que lhe rendeu um Oscar póstumo. Enquanto a condução de Lumet é brilhante e o roteiro de Chayefsky estrutura-se como um suspense, pela velocidade com que a trama avança, Network é clássico pela visceral performance de seu protagonista, cuja espontaneidade desesperada é transformada em espetáculo quando os inflamadas discursos do jornalista, conclamando os espectadores a se rebelarem contra o sistema, vira um show — e se essa equação lembra o formato dos reality shows, que se apropriam do “verdadeiro e autêntico” caráter de seus participantes, é porque Rede de Intrigas também antecipou isso.
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A cena em que Beale perde completamente o controle, vagando pelo set do noticiário, as câmeras loucas atrás de seu inesperado e insano percurso, é um tesouro cinematográfico: estimulado por uma espécie de visão sobrenatural, o respeitado jornalista grita para que seus espectadores levantem-se de seus sofás, dirijam-se às janelas de suas casas e gritem “Eu estou furioso e não vou mais aceitar isso” (I’m mad as hell and I’m not gonna take this anymore, em inglês). Não demora para que o público, inspirado pelas palavras, obedeça ao comando do âncora e, como numa colmeia raivosa, todos plantam-se às janelas e berram, dando seu basta — qualquer semelhança com a realidade não é, novamente, mera coincidência: esse é o poder da televisão.
Percebendo que o jornalista pode ser uma estrela, Diana o elege como arauto do apocalipse, o mensageiro que articula a ira da população — ela explora o claro desmoronamento emocional do personagem, mesmo que Max Schumacher (William Holden, perfeito na decadência do editor veterano perante à nova e impetuosa geração), amigo de longa data de Beale, tente impedi-la. Identificando que o povo quer uma figura que represente suas maiores frustrações e insatisfações na televisão, Diana dá um programa inteiro para que Beale, elevado ao status de profeta, traga a verdade. Não a verdade eterna ou inabalável da religião, mas a traiçoeira e instável verdade humana. E nesse ponto, até mesmo a rebeldia é transformada em produto — e Rede de Intrigas, inteligentemente, não escolhe lados: os empresários sofrem sua cota de denúncias, mas também os revolucionários, que negociam direitos de imagem em uma hilária e trágica sequência envolvendo ideologias, metralhadoras, herdeiras raptadas, contadores e contratos televisivos.
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Ao estudar a televisão como Bíblia americana — "o mais terrível poder do mundo ateu" —, Network apresenta a figura do messias contra a hipocrisia e sua eventual transição para o posto de personalidade de TV contemporânea para expor toda a ferida psicológica de uma sociedade. Matando o tédio através da venda de ilusões, de acrobacias circenses com seus videntes e mágicos, a televisão como entidade assume um protagonismo que ressoa ainda hoje. Um exemplo prático: Jeff Zucker, presidente da CNN, acredita que seus colunistas pró-Donald Trump — que, como todos sabemos, não seria ninguém sem a televisão e o reality show que comandou durante anos, O Aprendiz — não são jornalistas, mas personagens de uma série dramática. Na filosofia do executivo, seus empregados devem se comportar também como criações de uma narrativa e não somente como porta-vozes de uma visão de mundo.
Na era do predomínio das redes sociais ao invés da televisão no que se refere às fake news, à pós-verdade e até mesmo à autoverdade — quando proferir sua opinião, sua autenticidade, é mais importante do que distinguir o que é verdadeiro do que é falso, como explica a jornalista Eliane Brum em sua coluna no jornal El País; ou quando dizer é mais importante do que é dito —, qual é a relevância de Rede de Intrigas? Toda, uma vez que o drama de Lumet e Chayefsky é muito mais sobre as relações estabelecidas entre os meios de comunicação, o capitalismo e seus consumidores do que a sedução exercida pela televisão.
O conflito de gerações central da narrativa, embate personificado pela complexa e nociva relação amorosa entre Diana e Max, perpetua-se. Não é sobre os jornalistas da antiga e os produtores do showbiz, mas sobre todos que são deixados para trás por aqueles que chegam para assumir os cargos de maior poderio. Assistir a Network em nossos tempos é compreender como as mídias podem construir e/ou destruir presidentes e papas. É compreender, igualmente, que aqueles que lutam contra a hipocrisia e "dizem a verdade" muitas vezes baseiam-se na sedução para esconder o vazio de suas palavras — não é à toa que Beale desmaie e tenha surtos nervosos ao vivo após descarregar seus discursos; até certo ponto, ele diz a verdade, mas a televisão (e, hoje, as redes sociais) amansa e esgota toda a fúria: tudo é um produto e tudo pode ser vendido, basta encontrar seu público-alvo e a melhor forma de se comunicar com ele.
O fato de que uma produção extremamente acusatória como Rede de Intrigas tenha sido realizada dentro de megasistema apelidado de "fábrica de sonhos" só ressalta as contradições da vida contemporânea e o próprio vazio em si: muitas vezes, os discursos são apenas fogos de artifício. É preciso ficar atento, hoje mais do que nunca, às aparências e, principalmente, ao que está escondido abaixo da superfície — o espetáculo, nas palavras do filósofo Guy Debord, não está nas imagens, mas nas relações que estabelecemos com elas. Por isso, a razão para começar 2019 com Rede de Intrigas é a lição maior que esta sátira/documentário pode nos ensinar: como diz o velho ditado, nem tudo que reluz é ouro.