Quando Laura (Laetitia Dosch) recebe um convite inesperado de Gaspard (Félix Moati), um desconhecido com quem ela esbarrou em um trem, mal pode imaginar que a inusitada proposta de se passar pela namorada do rapaz é apenas o início de um sem-número de situações esquisitas. Aliás, nem a protagonista e nem os espectadores estão preparados para as surpresas guardadas pelo peculiar A Excêntrica Família de Gaspard, comédia dramática escrita e dirigida por Antony Cordier (Para Poucos).
O cineasta francês, que esteve no Brasil durante a edição 2018 do Festival do Rio, conversou com o AdoroCinema sobre o processo de escrita desta dramédia — em cartaz no Brasil —, quase 100% ambientada em um zoológico e sua primeira obra após um hiato de sete anos; os desafios — e pesadelos — de se trabalhar com bichos de verdade no set; e as íntimas relações que nós, os seres humanos, guardamos com nossos companheiros do reino animal:
Pergunta: Como surgiu a ideia de A Excêntrica Família de Gaspard, com seus personagens peculiares e seu roteiro inusitado?
Resposta: A ideia original do filme veio de um livro que tinha quando era criança. De fato, ele estava em um zoológico que eu visitei várias vezes durante as férias com a minha família. Esse livro contava a história do criador do zoo, que era um personagem inacreditável, alguém que, durante os anos 1950, foi à África para capturar animais e que depois os levou de volta para a França, para exibi-los nas escolas. Esse livro era ilustrado por fotos, podíamos ver sua rotina, sua vida em família e, principalmente, seus filhos. Havia, por exemplo, um filho dele que tinha a minha idade na época, por volta de cinco ou seis anos, e que deitava-se ao lado de um guepardo bebê [...] Os personagens de A Excêntrica Família de Gaspard são criações minhas a partir dos personagens desse livro, são extensões. Personagens que cresceram com a vida selvagem, em contato com animais de verdade, e que não são como as outras pessoas, que têm outros valores. Esse filme faz um pouco parte de uma inveja de infância porque minha vida era menos colorida, menos empolgante e menos romanesca, e a vida daquelas crianças era extraordinária. Então, quis imaginar como seriam essas crianças 25 anos depois.
P: Diferentemente de outras comédias, das comédias tradicionais por exemplo, o humor deste longa não está nas piadas, mas em suas situações inesperadas. Como foi o processo de escrita do roteiro?
R: É uma comédia, de fato, mas não é uma comédia de piadas. Não existem piadas. O riso vem das situações, dos diálogos. Por exemplo, o que é engraçado, ao meu ver, é a falta de pudor dos personagens, como eles podem ser totalmente despudorados. Nós, como espectadores, pessoas “normais”, ficamos desestabilizados, divertidos e/ou chocados por essa falta de pudor. Quando Gaspard retorna e reencontra o pai pela primeira vez, vemos Max (Johan Heldenbergh) entrar em um grande tanque onde existem centenas de pequenos peixes que vêm morder sua pele, e o pai está completamente nu diante de seus filhos. São três filhos, entre as idades de 25 e 30 anos, e essa situação é completamente normal para eles. Para nós, no entanto, não é normal. É isso que é engraçado: a total falta de pudor dessas pessoas.
P: Os diálogos também são muito naturais, deixam uma impressão de que foram até mesmo improvisados pelos atores. Você seguiu o roteiro ou abriu espaço para a livre interpretação dos atores?
R: Antes da filmagem, costumo improvisar e imaginar cenas. Nós filmamos dentro de um zoológico de verdade, que está ativo. Então, como não podíamos parar as atividades do zoológico, tínhamos que ficar alguns dias fora durante as seis ou sete semanas de filmagem, e pudemos observar o que se passava lá. Tiramos ideias de cenas daí. Improvisamos sobre o momento, a partir de detalhes que não tínhamos quando escrevemos o roteiro. Mas, durante as filmagens, gosto que os atores permaneçam fiéis ao diálogo. Ao meu ver, ao menos no cinema que faço, quando os atores improvisam, as coisas não saem tão bem quanto nas cenas já escritas. E isso porque quando escrevemos, escrevemos com limitações muito precisas, com economias. Quando improvisam, os atores tendem a repetir informações. Há um problema de ritmo. Então, tento seguir o que está escrito.
P: Seus dois longas anteriores, À Flor da Pele e Para Poucos, são dramas românticos. Em A Excêntrica Família de Gaspard, o romance continua mas o drama é substituído pela comédia: é uma comédia romântica. Como foi essa transição do drama para a comédia?
R: Sempre tive a impressão de estar fazendo comédias. Os temas e personagens dos meus filmes sempre me fizeram rir. Meu último filme era mais erótico, mas as coisas que aconteciam com os personagens me faziam rir, eram irônicas. Mas as pessoas não consideraram Para Poucos como uma comédia. Então, ao lado da minha corroteirista, Julie Peyr, decidimos fazer progresso em relação à comédia porque até agora as pessoas não nos compreenderam. Pensamos em cada cena de A Excêntrica Família de Gaspard como uma comédia.
P: O zoológico é uma parte crucial do filme, mas não só no que diz respeito aos animais. Você enxerga A Excêntrica Família de Gaspard também como uma espécie de zoológico das relações humanas?
R: Sim. O universo do zoológico pode simbolizar muitas coisas. Antes, todos amavam ir aos zoológicos, na época em que eu era criança. Hoje em dia, com a consciência ecológica, cada vez mais importante no mundo, os zoológicos são muito contestados. Nos perguntamos por que tirar os animais de sua liberdade para torná-los cativos em outro lugar. Nós evoluímos nesse quesito e os zoológicos mudaram um pouco, alguns agora são vistos como santuários. Acho que isso é interessante em um mundo que se move o tempo todo e que possui alguns âmbitos ameaçados. O cinema também é um ambiente ameaçado. Continuaremos a ir às salas de cinema, juntos e coletivamente, para ver um filme nas telonas daqui a 20 anos? Não tenho certeza, de fato. Não sabemos o que vai acontecer com o cinema. E com o zoológico é parecido. O zoológico simboliza tudo isso.
P: O filme trata frequentemente das fronteiras que existem entre nós e os animais, bem como os laços que nos unem. Como você enxerga essa animalidade dos seres humanos?
R: Nós temos uma relação impressionante com o mundo animal. Há um contato carnal entre os seres humanos e os bichos. Tenho um filho pequeno e sempre que ele vê um animal, ele deseja tocá-lo, acariciá-lo. É uma relação quase sensual que nós temos com os animais. Então, neste filme, tinha a vontade de investigar essa relação, nossa animalidade. No fim das contas, mesmo que não formulemos essa ideia, temos a sensação de pertencer ao reino animal. Mas quando era estudante, nós aprendíamos que não éramos iguais aos animais, que temos uma linguagem que eles não têm, uma consciência que eles não têm. E, agora, as coisas são diferentes: temos a consciência de que partilhamos o mesmo planeta e o mesmo destino que os animais. É por isso que nosso olhar em relação aos animais mudou. Achei que seria interessante falar um pouco sobre isso neste filme.
P: Seu último filme foi lançado há sete anos. Como foi esse hiato, esse tempo distante das telonas?
R: Foi muito difícil financiar A Excêntrica Família de Gaspard porque o tom do filme é um pouco diferente. É, evidentemente, uma comédia, mas não é uma comédia de piadas, como disse. É também um filme de autor, arthouse, mas que não é radical nesse sentido. É um filme de diversos gêneros e, de fato, é difícil produzir esse tipo de projeto. Então, precisei encontrar maneiras para produzir o filme. E como se passa em um zoológico, tínhamos que lidar com animais e isso custa ainda mais dinheiro. Não podemos controlar os animais: se eles não querem cooperar, temos que esperar. Então, não é um filme que poderíamos fazer com poucos recursos. Só realizamos o filme quando encontramos o financiamento para apresentar cenas realmente engraçadas e animais de verdade, com treinadores de verdade, ao espectador.
P: Todos dizem que trabalhar com animais é muito difícil. Como foi essa experiência de trabalhar com tantos animais de uma só vez?
R: Não saiu nada como o previsto. Disseram que seria fácil trabalhar com os pinguins, que bastava comprar um peixe e lançá-lo na água que os pinguins mergulhariam… Tínhamos 15 pinguins e nenhum deles mergulhou. E, por outro lado, o bebê tigre, que não queríamos irritar, que achávamos que nos decepcionaria, fez a cena de uma só vez, fez o percurso ideal da cena de primeira. Foi sempre surpreendente. Às vezes decepcionante, mas sempre interessante.
P: Trabalhar com os animais também trouxe um pouco mais do espírito do filme, de ser inesperado e natural?
R: Sim, mas sobretudo em relação às coisas que já estavam escritas e a montagem mais do que o que é inesperado. É uma questão de dizer: será ótimo se o espectador não puder adivinhar qual será a próxima cena. Quais são as surpresas do filme? É isto que acho interessante. Todos já viram muitos filmes e séries, nós estamos habituados à ficção, adivinhamos um pouco do que vai acontecer, e o que tentei fazer em A Excêntrica Família de Gaspard foi não permitir que tudo fosse adivinhado.