Apesar das férias de verão já marcadas e das expectativas dos filhos, a iminência do fim pesa sobre os ombros de Lucrecia (Mercedes Morán) e Pedro (Gustavo Garzón), casados há 22 anos. Mas é justamente nesta última viagem antes que as derradeiras palavras sejam ditas, que o casal de argentinos embarca em uma verdadeira e singela jornada de afetos, lembranças, memórias e descobertas pelas praias de Santa Catarina, no litoral sul do Brasil.
Essa é a premissa da comédia dramática Sueño Florianópolis, coprodução entre nosso país, os hermanos e a França, que constantemente quebra barreiras, sejam elas culturais, idiomáticas, sociais e/ou pessoais. Em entrevista exclusiva ao AdoroCinema, concedida durante o Festival do Rio 2018, a diretora e roteirista Ana Katz (Kiki - Os Segredos do Desejo) falou sobre o longo processo de produção deste projeto, sobre o trabalho com nossos pratas-da-casa, os atores Marco Ricca e Andréa Beltrão, e também sobre a atual e complexa situação política, tanto no Brasil, quanto no mundo:
João Vitor: Sueño Florianópolis é um filme sobre liberdade, que traz uma família um pouco disfuncional que aprende muito no caminho, que busca a liberdade de descobrir coisas sobre si mesmos. Para você, qual é a importância de um filme como esse em um momento tão conservador, especialmente aqui no Brasil?
Anna Katz: O filme é importantíssimo hoje porque quando o escrevi, não era esse o contexto. Antes de mais nada, não creio no "disfuncional". Isso parte da ideia de que há uma família funcional, no ponto de vista da economia capitalista. Essa maneira de julgar as famílias não me interessa. Mas é verdade que o filme tenta desconstruir, tenta colocar questões sobre a liberdade e creio que a maior coragem dos personagens é que eles buscam se perder. O caminho que o Brasil e a Argentina estão tomando neste momento me impacta muito porque haviam algumas liberdades que as pessoas haviam conquistado — conquistas que me deixavam muito orgulhosa, por exemplo, em relação à diversidade sexual. Durante o governo kirchnerista na Argentina foi criada a lei para os casamentos do mesmo sexo, havia a liberdade para a escolha de gênero. Considerava essas leis como maravilhosas e naturais: finalmente os políticos se deram conta disso. E, de repente, me dou conta que temos que defender ainda mais o que conseguimos.
JV: É uma vigilância constante.
AK: Se entendo que o ser humano vem se sentindo mais protegido através de uma construção muito concreta de valores, que são o capitalismo, a religião e a família, então também entendo que isso gera uma situação de insegurança para as pessoas que não têm muito a ver com essas instituições. Mas creio que este filme questiona estas instituições, tratando de entender, por exemplo, como é possível sentir tanto amor por alguém com quem você conviveu durante anos, mas com quem você não quer mais estar junto. Como se faz? O que há para ser feito? É possível seguir? Não? A amizade é possível? O que se faz? São perguntas que parecem bobas, mas que acredito estarem nas mentes de milhares e milhares de pessoas.
JV: Logo no começo do filme, há uma dificuldade de comunicação, na cena em que Lucrécia [Morán] encontra com Larissa [Beltrão] e Marco [Ricca]. Ao longo do filme, no entanto, essas barreiras são rompidas, os ruídos da comunicação acabam sendo superados.
AK: É lindo o que você disse. No início, a comunicação é mais formal, mais social. Você necessita de gasolina e eu a ofereço a você. A compreensão é mais distante. Mas, posteriormente, quando as pessoas se aproximam, é possível se entender através de outros recursos, muito mais íntimos. Acho que é aí que surge uma compreensão mais pessoal onde a diferença de idiomas se abranda. E mesmo quando eles não se entendem, isso não importa.
JV: Há também uma união entre os jovens e os adultos: tanto os personagens adolescentes quanto os mais velhos se permitem certas aventuras sentimentais como se fossem da mesma geração, da mesma idade.
AK: Isso me faz lembrar de uma imagem da qual gosto muito. Quando os animais têm filhotes, as crias crescem e não há mais família. Nós, humanos, somos família, nos juntamos nas festas ou nos aniversários, independente da fase adulta. E isso me parece ser algo anti-natural. Então, queria entender como uma família de pessoas adultas e adolescentes são quase como um grupo de amigos em uma aventura.
JV: O que os une de verdade, não é?
AK: Exato. Essa pergunta é importante: por que estão juntos? Se estão vivendo aventuras sexuais, poderiam ser uma equipe, mas são uma família.
JV: Além de todas essas questões trazidas pela comédia, também há uma certa melancolia, principalmente por causa de tantos dias nublados em meio àquele período de férias e alegria. Filmar durante tantos dias nublados foi intencional?
AK: Não, os dias nublados não foram intencionais. Tive sorte, a natureza me ajudou: esses dias nublados fazem muito bem ao filme. Mas a melancolia, sim, foi intencional. O filme carrega a tristeza da aceitação. O filme começa com um casal que está decidido a ficar junto. Mas conforme eles vão vivendo as experiências proporcionadas por essas férias, se dão conta de que não são mais um casal. E logo eles que se amam tanto e para sempre. Isso é duro e creio que há uma melancolia nisso.
JV: E como foi filmar em Florianópolis?
AK: Inicialmente, foi complexo. Fizemos cinco viagens até encontrar as locações porque na década de 90, o mundo era outro. Buscávamos o que queríamos, mas não encontrávamos. Quando eu era adolescente, ia à Canavieiras, na Bahia, e agora lá é uma cidade. Então, foi um trabalho da produção brasileira, um trabalho muito significativo, feito com muito amor junto à produtora argentina. Foi um projeto feito com muito cuidado e aos poucos. O trabalho em Florianópolis em si foi muito agradável. O local foi muito generoso com nosso trabalho. A equipe tem saudades de lá, foram ótimos dias, a filmagem foi ótima.
JV: Qual é a sua relação pessoal com o Brasil, sua história com o Brasil?
AK: Me sinto muito próxima do Brasil, sempre vim aqui, venho desde criança. Sempre gostei muito daqui. Às vezes me pergunto por que tanto encanto. Falo do Brasil em quase todos os meus filmes, me sinto tranquila quando estou aqui. E sei que as coisas não estão tranquilas. Não é uma questão política. Quando era criança, tive oportunidade de viajar para muitas partes diferentes do Brasil. Uma mostra deste ano, "Histórias Extraordinárias", também fez uma retrospectiva de todos os meus filmes em Curitiba, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte. Estará em São Paulo no ano que vem. Então, me sinto involuntariamente próxima do Brasil, gosto daqui.
JV: Um filme como esse, que envolve romance, comédia e drama, não funcionaria sem a boa relação do elenco em cena. Como foi o processo de trabalho com os atores e o processo de escolha do elenco?
AK: Ao meu ver, a atuação é uma parte muito importante de meus filmes. Eu mesma sou atriz, então é algo muito natural para mim. Do que mais gosto é borrar os limites entre o set e a vida, deixar que surjam olhares ou cenas quase documentais: deixar ver o olhar verdadeiro dos atores. Mercedes Morán e Gustavo Garzón são dois atores que adoro, a quem admiro desde sempre, que são incríveis. Já os atores jovens são realmente filhos dos dois: Manuela Martínez é filha de Mercedes e Joaquín Garzón é filho de Gustavo. Quanto a Marco, já o havia visto como ator há muitos anos, durante o Festival de San Sebastián, como protagonista de A Via Láctea. Gostei muito da sensibilidade muito particular que ele tem: ele é gracioso e melancólico, tem um sorriso contagioso. Sempre tive vontade de trabalhar com ele. E Andréa Beltrão é uma atriz formidável, de um poder impressionante. O trabalho em equipe foi muito impactante. E ainda há Caio Horowicz, que fez o filho de Marcos, um ótimo ator brasileiro. Juntos, os sete atores pareciam invencíveis e isso me parece ser uma metáfora do que pode ser a união entre países. Há muita energia e quando sabemos utilizá-la, somos mais fortes.
JV: Nós só saímos ganhando com essa integração, essa união. E quanto à opção de situar os eventos nos anos 1990? Da onde veio essa inspiração?
AK: Por um lado, tinha o desejo de que essa aventura fosse mais "aventura" em si, menos relacionada com a internet. Por outro lado, os anos 90 na Argentina foram um período de muita negação, que nos levou ao desastre total. É parecido com o que o Brasil está passando agora — mas quando escrevi o filme, em 2012, isso não estava acontecendo aqui. Nada havia ocorrido aqui ainda. Os anos 90 foram uma época de muita ansiedade, onde as pessoas tinham uma febre de consumo muito grande e o câmbio monetário brasileiro era muito favorável para os argentinos. Os argentinos de classe média, não muito ricos, podiam vir ao Brasil de carro. Não tinham dinheiro para voar de avião, mas podiam vir de carro ao Brasil. Então, essa época me pareceu muito interessante sobretudo por ter sido a construção de um desastre.
JV: O filme também é uma coprodução no sentido mais abstrato do termo: você tem os dois idiomas, atores dos dois países, a cooperação. O que nós, brasileiros e argentinos, temos a ganhar com essa aproximação?
AK: Creio que muito. Creio que o cinema é uma ferramenta muito forte para refletir e para nos aproximar da identidade de um país. O que mais nos falta é um espaço de reflexão. De pensar. Ações são cometidas de maneira muito brutal e alienada, então creio que o cinema nos obriga a compartilhar, por exemplo, um processo de trabalho de cinco anos, onde nós devemos nos ouvir, onde nós nos conhecemos mais e tudo isso leva a uma relação e a uma empatia maiores. Isso é muito importante: pensarmos por nós mesmos e como vizinhos.
Sueño Florianópolis está em cartaz no Brasil.