Nono melhor filme brasileiro de todos os tempos. Indicação ao Oscar. E, é claro, a vitória máxima no Festival de Cannes, de onde saiu com a Palma de Ouro na bagagem, em 1963, caneco comemorado com desfile em carro aberto no retorno ao Brasil. O Pagador de Promessas, filme de Anselmo Duarte baseado na obra homônima de Dias Gomes, é, sem sombra de dúvidas, um dos mais importantes longas já produzidos em nosso país. Mas a relevância desse drama de fundo religioso, político e social vai muito além de ser o único filme brasileiro e sul-americano a levar a melhor em Cannes.
A trama é simples: Zé do Burro (Leonardo Villar, fantástico no papel) é um roceiro baiano que deseja pagar uma promessa feita à Santa Bárbara. Como a intervenção divina veio, o homem - junto à sua esposa, Rosa (a sempre formidável Gloria Menezes) - coloca uma imensa cruz de madeira nas costas e se põe a caminhar por mais de 30 quilômetros até chegar a Salvador, onde fica localizada a igreja em homenagem à santa. Mas a missão, que não parecia ter complexidades para além da provação física, torna-se uma verdadeira tragédia quando o padre Olavo (Dionísio Azevedo) rejeita a via crúcis de Zé pelo fato da promessa ter sido feita em um terreiro de candomblé.
O que não é corriqueiro, no entanto, é o modo como Duarte conduz sua narrativa. Desde o início, o cineasta faz questão de deixar claro que tudo pegará fogo - como a profética cena de abertura demonstra, com a fumaça que toma conta do céu. Trazendo um pano de fundo de puro caos à trama, o diretor e sua equipe nos fazem testemunhar a transformação de Zé em herege em um piscar de olhos e, posteriormente, em salvador e messias. Conforme se intensifica o verdadeiro carnaval de figuras que passam pelo corpo estirado de Zé nas escadarias de Salvador, à espera da aprovação católica, compreendemos do que se trata O Pagador de Promessas: o choque e o contraste dos muitos Brasis que formam este país.
O slogan do Brasil, pelo menos para os olhos estrangeiros, sempre foi a nossa diversidade: enaltecer a convivência harmônica das muitas culturas, etnias e credos que formam o caldeirão de nossa nação era, certamente, a melhor forma de propaganda. Mas, como diz o velho provérbio, "quem não te conhece, que te compre". Nos últimos anos, a ideia de união e de calor humano normalmente associadas ao povo brasileiro foram desmanchadas, vez após vez, por casos de intolerância religiosa como o que está no centro deste vencedor da Palma de Ouro.
É uma crise, de fato, da comunicação, da palavra: apesar de termos o português como língua oficial, o idioma em si parece mais uma barreira do que uma ferramenta. Para que haja troca, é preciso equilibrar discurso e escuta - e, em O Pagador de Promessas, fica provado que a ausência da audição é um problema antigo nos lados de cá.
Todos desejam tirar proveito da jornada trágica de Zé do Burro, de uma forma ou de outra. Há a imprensa sensacionalista representada pelo personagem de Othon Bastos, que elege o roceiro como um herói subversivo para vender mais jornais em meio à espetacularização da fé e do sofrimento; há também o lado dos capoeiristas, que enxergam no fazendeiro vivido por Villar um ícone de resistência contra a polícia e a Igreja; e, há, é claro, entre tantas outras perspectivas, a da própria instituição católica, que toma para si a "missão" de (re)evangelizar Zé: Iansã, entidade do candomblé, não é igual à Santa Bárbara.
Mas fato é que o Brasil é um produto de sincretismos. Em quase 1h40 de duração, há espaço em O Pagador de Promessas para uma procissão de tipos que simboliza à perfeição as dicotomias inerentes à identidade nacional: são mães-de-santo e beatas; proxenetas e policiais; padres e roceiros; malandros aproveitadores como Bonitão (Geraldo Del Rey) e inocentes mulheres como Rosa. Mais de 65 anos após seu lançamento original, este longa prova continuar sendo extremamente relevante.
Construído de maneira sutil até explodir em um clímax de pura angústia, O Pagador de Promessas bem poderia ser considerado como um filme noir brasileiro - com suas sombras marcadas, personagens moralmente questionáveis e um encerramento amargo - ou um terror escondido sob o título de drama social. O que é certo, de uma forma ou de outra, é que este expoente do Cinema Novo Brasileiro, com suas técnicas modernas de montagem e de câmera, comprova por que os clichês, apesar de seu uso cansativo, são tão impactantes: porque estes são reais.
É evidente que O Pagador de Promessas é anacrônico, um produto de sua época. Entretanto, os temas que carrega em seu âmago perpetuam-se através do tempo pois as divisões permanecem: o campo e a cidade, a fé e a descrença, a devoção e a malandragem, a retidão e a os "jeitinhos", a pobreza e a riqueza moral, a espiritualidade e a podridão, a ética e a vulgaridade moral, a castidade e a luxúria, o ser humano e a natureza, a ingenuidade e a perversidade, a autoridade terrena e a autoridade divina, a arrogância dos que se sentem superiores e a humilhação daqueles que são inferiorizados.
Repleto das contradições nacionais e de sua tragicomédia histórica, O Pagador de Promessas é o filme brasileiro por essência. Infelizmente.