Morto Não Fala faz uma conexão entre terror, ambiente de periferia de São Paulo e religião, e garante alguns sustos. O filme de terror de Dennison Ramalho foi exibido no Festival do Rio 2018 na tarde da última terça-feira (06). O tradicional debate que segue os longas selecionados da Première Brasil na sala de cinema do Odeon levantou temáticas sociais, além de críticas à religião e sucateamento do Instituto Médico Legal (IML).
Estrelado por Daniel de Oliveira, Fabiula Nascimento e Bianca Comparato, o filme segue o plantonista de um necrotério que possui o dom paranormal de se comunicar com os mortos. Só que o problema começa quando o relato de um dos corpos envolve um segredo que ativa uma perigosa maldição e coloca sua família em desgraça.
Inspirado em um dos contos de Marco de Castro, Morto Não Fala foi filmado em Porto Alegre, apesar de retratar o ambiente da periferia de São Paulo. Segundo o diretor Dennison Ramalho, as obras do autor costumam retratar a realidade do necrotério e da criminalidade. Assim como o universo violento das noites de São Paulo, testemunhado em primeira mão pelos "papa-defuntos", enquanto os cidadãos comuns dormem, e que vira notícia nos jornais no dia seguinte. Essa também foi sua inspiração para o filme, afinal, é comum a morte inspirar a ficção de terror, revelou o cineasta.
Além disso, focar a trama em pessoas comuns cria uma identificação com o público. Ramalho afirma que, com tanta ficção envolvida, é importante que as pessoas se reconheçam nas histórias de pessoas que vemos tosos os dias, nas ruas, nos pontos de ônibus, indivíduos inseridos em narrativas fantásticas. Segundo o cineasta, uma de suas principais inspirações são os filmes de George Romero, como A Noite dos Mortos-Vivos e Despertar dos Mortos, que trazem como protagonistas trabalhadores comuns, do interior dos Estados Unidos, "pessoas que parecem de verdade".
Uma dos assuntos retratados é a religião. A personagem Lara, vivida por Bianca Comparato, é evangélica devota, mas passa por experiências de assombrações e invocações. Ela acredita em pastores midiáticos, que fazem, por exemplo, "exorcismos" ao vivo na televisão. De acordo com Ramalho, que foi criado como evangélico, mas possui "traumas de formação pessoal", o filme busca mostrar o conflito entre o racional e a fé, e denotar como isso pode ser cegante. O objetivo do cineasta era mostrar essa realidade, presente principalmente nas periferias, de forma contemporânea. Algo que não é novo no terror, afinal, o gênero mexe com a crença e questões religiosas, não só em Morto Não Fala, mas também em filmes de terror em geral.
Fora a ficção de terror, outra temática importante retratada no filme são as condições do IML. Dennison Ramalho indica que tentou retratar a realidade dos órgãos brasileiros, sucateados, sem recursos, mantendo a higiene a duras penas e, muitas vezes, fazendo autópsias no local, de tão frágil que seria mover um corpo já degradado. Segundo o diretor, o tratamento da morte no Brasil não é como mostrado nos filmes norte-americanos — os recursos (ou falta deles) impossibilitam que seja mantida a assepsia e a higiene.
Para realizar tais cenas, a equipe visitou diversos necrotérios pelo Brasil e o protagonista Daniel de Oliveira chegou a acompanhar profissionais e assistir a autópsias, para "reconhecer o terreno" e encarnar verdadeiramente o personagem.
Sem um herói definido, o filme traz diferentes nuances dos personagens. Faz uma construção ambígua tanto de Stênio, vivido por Daniel de Oliveira — um homem simplório, mas ao mesmo tempo desprezível —, quanto de Odete, interpretada por Fabiula Nascimento — que se torna amarga conforme o desenrolar de eventos. Nesse sentido, Morto Não Fala tem propositalmente um final aberto, pois o objetivo de Dennison Ramalho, em parceria com a Casa de Cinema de Porto Alegre, é continuar a história de Stênio em uma série de TV, para lançá-lo em uma jornada de redenção.
Exibido anteriormente no festival Fantastic Fest, Morto Não Fala teve seus direitos comprados pelo serviço de streaming norte-americano Shudder, da rede AMC. No Brasil, o filme chegará aos cinemas no primeiro semestre de 2019.