Se há uma etnia em situação de risco e de extrema falta de compreensão no Brasil, esta é a dos indígenas, espalhados pelos quatro cantos de nosso continental país em diversas tribos que resistem à violenta marcha do progresso. Mas apesar da continuidade dos sangrentos conflitos de terra entre latifundiários e nativos brasileiros e dos preconceitos, a sétima arte nacional vem descobrindo uma outra forma de analisar os povos que estão na base da formação de nossa identidade: a da observação empática e afetiva, o norte prinicipal da docuficção Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos.
Codirigido por Renée Nader Messora e João Salaviza, o longa conquistou os jurados da mostra Um Certo Olhar na mais recente edição do Festival de Cannes e deixou a Croisette com o prêmio especial do júri, concedido pelo presidente Benicio del Toro e seus colegas. Agora, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos desembarca no Brasil, mais precisamente na Cidade Maravilhosa, onde já fez sua estreia em território nacional em meio ao Festival do Rio; bem recebido pelo público, presente no icônico Odeon, na tarde de ontem, dia 4, o longa colocou em pauta a luta pelo protagonismo indígena.
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Este híbrido de documentário e ficção, como contaram Salaviza e Nader aos espectadores após a exibição do longa, partiu de um projeto cinematográfico organizado pelos dois dentro da Aldeia Pedra Branca, localizada no município de Itacajá, Tocantins. Lá, os diretores, que frequentam o agrupamento desde 2010, conheceram o protagonista de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos: Ihjãc Krahô — ou Henrique, como é chamado dentro do ultrapassado conceito de "nome de branco —, cuja vida tornou-se obra da ficção e matéria do cinema.
No início, o bem-humorado, apesar de tímido, Ihjãc não gostou muito da proposta da dupla de cineastas: sentiu medo ao pensar em encenar questões como a relação dos krahô com a morte e a com a espiritualidade. Mas o nativo de Pedra Branca, que dirigiu-se ao público carioca em sua língua originária, venceu seus temores quando enxergou no projeto uma oportunidade única: a de retratar, verdadeiramente, os costumes, tradições e o modo de vida do povo krahô, que se espalha pelo norte e nordeste brasileiros, entre os estados do Tocantins, do Piauí e do Maranhão.
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Partindo de uma história real de um outro rapaz da aldeia, testemunhada por Salaviza e Nader durante sua estadia no local, em 2013, os realizadores e roteiristas desenvolveram a narrativa de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos ao lado de Ihjãc. Nasceu, assim, o script do filme, que reconta a trajetória de um jovem, recém-órfão de pai, que acredita estar sob o efeito de um feitiço maligno. Para não sofrer as consequências da maldição, decide deixar a aldeia para viver um tempo na cidade e nos meios urbanos para "ser esquecido" pelos maus agouros.
Mas os diretores fizeram questão de deixar claro que a escrita lhes permitiu criar apenas um início e um final: eles tinham em mente o que queriam dizer e como desejavam retratar o povo krahô — longe da dureza do olhar etnográfico ou do incômodo exotismo da perspectiva turística, comuns em produções sobre populações nativas —, mas foi o convívio e as vivências que deram forma ao roteiro em si. É por isso que o próprio Salaviza define seu longa como um "monstro", nascido entre as fronteiras da realidade e daquilo que é ficcional.
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Durante nove meses, os diretores se adequaram ao tempo da Aldeia Pedra Branca. Se fosse preciso esperar três horas pelo surgimento do sol para rodar uma sequência específica, esperariam; foi assim que o ritual do cinema encontrou-se com o ritual dos krahô, nas palavras do realizador, adequando a ficção ao cotidiano da aldeia. Esse encontro produziu algo ainda mais interessante: foi só quando traduziram as falas de seus personagens para o português que Salaviza e Nader perceberam as riquezas e os múltiplos sentidos dos diálogos improvisados pelos krahô — todos profundamente trabalhados por Ihjãc.
É a palavra, aliás, como destacou Aline Rochedo Pachamama, escritora e historiadora indígena que mediou o debate entre a equipe e os cinéfilos cariocas, o principal instrumento dos povos nativos para a manutenção de sua cultura. Em um embate constante com a modernização imposta pelos "homens brancos" e o imperialismo dos costumes ocidentais, os indígenas brasileiros deparam-se com dicotomias de identidade a todo instante. Na fronteira entre a tradição e o futuro e o que é ser nativo e ser brasileiro, as etnias indígenas travam uma luta para manter viva sua memória e seus rituais — vale lembrar que a equipe do longa fez um protesto no tapete vermelho de Cannes pela demarcação das terras indígenas.
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"Somos vistos como fósseis, como imagens do século XVI. Nós queremos desconstruir isso", disse Rochedo, uma sentença afirmativa que define bem a essência de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. Não há nada de hermético ou exótico nos krahô: são "um grupo social dotado de especificidades, que precisa ser representado artística e politicamente como qualquer outro", como marca a crítica 4 estrelas do AdoroCinema, e que, de quebra, ainda podem ter muito a nos ensinar em termos de civilização e de organização social.
"Temos milênios de atraso civilizacional em relação aos krahô", declarou Salaviza sobre a riqueza da estruturação política da sociedade em questão, um sistema verdadeiramente ecológico avant la lettre e anticapitalista. Na Aldeia Pedra Branca, não existe acumulação de riqueza ou de poder, contou o diretor, que ainda definiu o modo de vida krahô como uma utopia possível e exemplar para as lutas sociais contemporâneas.
Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos ainda não tem previsão de estreia.