O Festival do Rio sempre promove debates com os filmes selecionados da Première Brasil. Mas quando Deslembro foi exibido no sábado (04/11), a famosa sala do Odeon se transformou numa troca de desabafos e memórias pelo público, contando relatos sobre os dias obscuros da ditadura militar e, até mesmo, da política atual.
Estreia da diretora Flavia Castro na ficção, a trama gira ao redor de Joanna (Jeanne Boudier), jovem inconformada de voltar a morar no Rio de Janeiro, quase uma década após o pai (Jesuíta Barbosa) ser capturado pelos militares, se tornando um "desaparecido político". Enquanto a família se anima com a anistia e as mudanças da América Latina no final dos anos 70, a protagonista sofre para se acostumar com o novo lar, conhece a avó paterna (Eliane Giardini) e passa a ter lembranças sobre a infância que nem conhecia dentro de si.
A sala emendou três salvas de aplausos ao fim da sessão, com gritos de "Viva a arte" ecoando os créditos finais. Tal reação emocionada não chega a ser surpreendente, considerando como Deslembro também é um relato pessoal da própria Flavia Castro — inspirada após fazer Diário de uma Busca (2010), documentário onde a cineasta investiga a morte do pai, militante político e também vítima da ditadura.
"Eu queria falar de memória, não especificamente a minha, mas do contexto no qual eu cresci. A vida da Joana não é a minha, mesmo que eu tenha vivido muitas das situações pelas quais ela passa. Não queria fazer um filme de época. Queria algo um pouco atemporal, ainda que seja marcado pelas escolhas musicais desse tempo. O roteiro já deixava claro que não queria algo naturalista, nem uma reconstituição de época. A ideia geral foi ter uma atmosfera própria, construída em camadas", contou a diretora.
As músicas já ajudavam a perceber a palpável reação do público desde a exibição, quando algumas pessoas cantarolavam "Cajuína" de Caetano Veloso, junto com os protagonistas. No debate, foram diversos os depoimentos. Um ficou emocionado ao citar seus tempos no movimento estudantil e por ver sua filha seguir a luta, tendo a mesma idade de Joana. Outro relembrou como viveu em tal contexto político. Teve espaço até para comemorar como a mesa do debate era majoritariamente feminina (todas as chefes de equipe de Deslembro são mulheres) — com exceção do ator-mirim Hugo Abranches, que ganhou as graças dos presentes.
Porém, foi a intérprete da mãe de Joana, Sara Antunes, quem fez questão de dar uma opinião pessoal sobre sua experiência no drama: "É um encontro de sutilezas. A Flávia se empenhou em criar um campo subjetivo. Tanto nossa relação afetiva, como nossas experiências pessoais contaram para isso. Meu pai também foi exilado político. O pai do Julian Marras (responsável por viver o padrasto da protagonista) também foi preso no Chile. De alguma forma, isso me tocou muito quando li o roteiro. Acho que a gente está precisando contar e rever a nossa história."
Diante de um controverso momento político, já era esperado que alguém ia questionar se o longa traz alguma provocação sobre a situação atual. Principalmente quando uma das falas de Joana xinga o vizinho como 'fascista de m*rda'. Mas Flávia nega tal ideia: "Nunca foi nossa intenção. Eu comecei a escrever o roteiro em 2009. É inacreditável que esse filme esteja sendo visto num momento que nenhum de nós imaginava que estaríamos vivendo. Ao longo das filmagens em 2017, a gente até foi incorporando algumas coisas como falar que vai pra Cuba. Mas não era nosso objetivo."
Exibido em Veneza, na Mostra de São Paulo e, agora no Festival do Rio, o anacronismo presente na mensagem política de Deslembro ainda será motivo de muito debate por aí. Mas, no final das contas, fica claro que não existe como controlar quem morre, quem vive e quem contará a sua história. O importante é não esquecê-la.
Leia a crítica do AdoroCinema.