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    Mostra SP 2018: "A questão de gênero não diz respeito apenas às mulheres", explica Inka Achté, diretora de Garotos que Gostam de Garotas (Exclusivo)

    Conversamos com a cineasta finlandesa sobre a iniciativa dos homens pelo feminismo.

    Destaque da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o documentário Garotos que Gostam de Garotas se concentra numa iniciativa rara: na Índia, um grupo de homens busca desconstruir nas crianças o machismo tóxico que levou, entre outros, a um caso brutal de estupro coletivo em 2012. Nasce assim o MAVA - Men Against Violence and Abuse ("Homens contra a violência e o abuso").

    A diretora finlandesa Inka Achté decidiu ir até a Índia e conhecer mais sobre estes homens: sua origem, o trabalho diário, o preconceito sofrido por lutarem em nome das mulheres. O foco se encontra no adolescente Ved, que faz parte do grupo e sofre com a violência do pai, além de dois educadores do MAVA.

    O AdoroCinema conversou em exclusividade com Achté sobre o projeto, em sua passagem a São Paulo para a apresentação do filme:

    Como equilibrou as questões típicas da cultura indiana com aspectos universais das relações entre homens e mulheres?

    Inka Achté: Meu objetivo era fazer um filme com que as plateias fora da Índia também pudessem se identificar, e não falo apenas dos europeus. Tenho grandes problemas com diretores europeus que vão a algum lugar exótico para mostrar como tudo aquilo é esquisito. Eu queria evitar isso a todo preço, mesmo sabendo dos riscos de ser uma estrangeira naquele contexto. 

    Por isso, na hora de filmar, eu me concentrei em coisas que podia entender, com as quais era possível me relacionar. Eu deixei de fora, de propósito, as questões muito específicas do debate religioso ligadas ao hinduísmo, a prática do dote, os casamentos arranjados, o sistema de castas. Senão, o filme teria se transformado numa grande bagunça antropológica. Foi uma escolha consciente, porque meu público-alvo se encontra essencialmente fora da Índia.

    Não acredita que a religião seja essencial para compreender aquela sociedade?

    Inka Achté: Primeiro, nem todos os indianos são hindus - um dos nossos personagens é muçulmano, por exemplo. Mas nem todos praticam a religião ativamente, todos os dias. Como o tema é vasto e complicado, eu precisava determinar os limites do que iria filmar. Eu tentei me ater ao contexto das oficinas do MAVA e à vida pessoal de Ved. Por acaso, ele não praticava muito a religião no cotidiano, e MAVA deixa a religião fora de suas atividades.

    Sei que religião e sociedade não podem ser separadas. Talvez para mim tenha sido mais fácil compreender a fé muçulmana, porque o islamismo é muito debatido na Europa, onde ainda é visto com bastante preconceito, ignorância e medo. Durante uma exibição do documentário, um espectador indiano me questionou sobre os aspectos hindus da relação entre homens e mulheres, mas para ser sincera, eu não esbarrei neles, nem busquei me confrontar com eles especificamente. Muitas religiões são baseadas em tradições milenares, e portanto carregam práticas e ideias que não se adequam muito bem aos tempos presentes. Isso vale para católicos, protestantes, muçulmanos.

    Você já tinha um contato próximo com a Índia antes? Por que filmou aquele grupo em particular?

    Inka Achté: Eu não conhecia muito. Parte disso veio do meu trabalho como agente de venda de documentários, o que implicava viajar muito. Por isso, estava acostumada a ir a lugares distantes, em festivais de cinema. Numa destas viagens, conheci Harrish, um dos personagens do filme. No final, é claro que eu precisava conhecer o essencial sobre a cultura indiana. Existe algo nas relações entre homem e mulher que possuem uma intensidade particular neste país, mas que espelham situações do mundo inteiro. Este sempre foi o meu objetivo.

    Algo que me ajudou muito foi o fato de trabalhar com uma equipe indiana. Depois da primeira viagem que fui ao país, encontrei esta equipe, e sei que teria sido impossível fazer o projeto sem estas pessoas. Mas tudo começou quando eu li sobre o estupro coletivo que aconteceu em Nova Delhi. O caso apareceu em todos os jornais, e em um destes veículos eu descobri um pequeno movimento de solidariedade dos homens pelas mulheres. Eles diziam que não se identificavam com os agressores, e isso precisava parar.

    Como mulher, achei reconfortante ler sobre essa iniciativa, e sinceramente não conhecia nada parecido na Europa. Comecei a procurar na Finlândia, meu país natal, ou no Reino Unido, onde eu morava na época. Havia algumas pequenas iniciativas online, mas é impossível filmar um projeto online. Por isso, precisei ir até a Índia.

    Algumas correntes feministas são contrárias à ideia de um homem liderando um grupo em nome das mulheres, como é o caso dos militantes do filme. Como enxerga esta questão?

    Inka Achté: Bom, eu não acredito que a questão de gênero diga respeito apenas às mulheres. Vamos usar esta analogia: quando eu me olho no espelho, não penso "Sou uma pessoa branca", mas obviamente o fato de ser branca traz consequências fundamentais quando viajo ao Gana, por exemplo, ou à Alemanha. O fato de eu ser branca não significa uma ausência de etnia, assim como ser homem não implica ausência de identidade de gênero.

    O que os homens deste movimento fazem não é apenas defender as mulheres e protegê-las, mas também atacar a masculinidade tóxica que prejudica a todos, inclusive eles mesmos. A questão não é apenas serem mais gentis com as mulheres, mas também tratar os garotos de modo diferente, educar os meninos de outro modo, investigar o modo como essa masculinidade é criada. Pelo menos, é assim que eu enxergo o trabalho deles.

    É por isso que você filma poucas mulheres no documentário - essencialmente a mãe de Ved e uma professora, vista rapidamente?

    Inka Achté: Esta escolha reflete o fato de a sociedade indiana ser extremamente segregada. Homens e mulheres são mantidos em espaços separados o tempo todo. Eu teria adorado encontrar garotas presentes naquelas oficinas, mas imagino que para a cultura indiana, teria sido um tabu imenso colocar menores de idade, de ambos os sexos, conversando sobre sexualidade juntos, ou viajando com este projeto juntos. Seria difícil encontrar pais dispostos a aceitar que as filhas participassem deste processo.

    Um dos melhores aspectos do filme é a ausência de julgamentos morais aos homens machistas. Muitos deles sequer percebem seu machismo, que consideram uma configuração natural da sociedade.

    Inka Achté: Não teria sentido julgá-los. É claro que existem homens neste contexto explorando seu poder, sua autoridade e seu privilégio masculino. Mas eu acredito que diversos homens não percebem isso. Por exemplo, quando criticamos o manspreading, os homens que abrem as pernas demais nos transportes públicos, espremendo as pessoas do lado deles, considero algo pequeno, provavelmente praticado sem pensar.

    O que irrita muitas mulheres em comportamentos pequenos como esses é o fato de não pensarem no espaço e no conforto das outras pessoas. Quando você percebe alguém que não tem essa consideração mínima, parece injusto. Eu poderia fornecer inúmeras analogias com o racismo, sobre como meus pais falam sobre os negros, mas sem acreditar a fundo no que dizem, apenas pela maneira como foram educados. Eles sequer percebem que a maneira como falam pode ser considerada ofensiva.

    Mas eu nunca pretendi que o filme servisse como solução, dizendo: "É isso que precisamos fazer para acabar com o machismo. Oficinas como esta vão trazer um despertar feminista na sociedade". Isso seria simplista demais. Esperava apenas que as pessoas saíssem da sessão, fossem jantar e discutissem sobre o que viram, relacionando com seus países e suas realidades. Para mim, os melhores filmes fazem isso.

    Como documentarista, você se sente responsável pelo modo como o filme afeta a vida das pessoas retratadas? Você continua acompanhando a trajetória de Ved e os outros?

    Inka Achté: Sim, acredito ter uma responsabilidade imensa com eles, especialmente com a mãe de Ved, que fala sobre as atitudes violentas do marido. É comum que as pessoas não percebam o peso do que dizem até se verem na tela grande. Isso aconteceu com ela, e por isso tomamos decisões específicas quando à distribuição do filme, que não será vendido à Netflix na Índia, nem exibido em sessões comerciais em Mumbai, exceto por exibições privadas. Cada festival é analisado individualmente e negociado caso a caso com Ved e a mãe dele, para protegermos os dois.

    O que a mãe de Ved diz pode não ser controverso para nós, mas dentro daquele contexto, é algo delicado. Além disso, nós decidimos pagar pelos estudos de Ved e da irmã dele. Acredito que é o mínimo que poderíamos fazer. Mas é difícil pensar em como apoiá-los de modo permanente depois do projeto. Chegamos à conclusão que investir na educação seria a melhor maneira. 

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