Chega aos cinemas esta semana um raro drama brasileiro disposto a inserir magia no cotidiano da classe média: Mare Nostrum, dirigido por Ricardo Elias. O cineasta de Os 12 Trabalhos aposta na história de dois homens que não se conhecem, mas acabam disputando a posse de um terreno na Praia Grande, em São Paulo, que pertenceu ao pai de cada um deles. Aos poucos, começam a suspeitar que o terreno tenha o poder de realizar os desejos de seu dono.
Nos papéis principais, Sílvio Guindane interpreta um jornalista divorciado, que tenta se reaproximar da filha pequena, enquanto Ricardo Oshiro vive um homem recém chegado do Japão, em dificuldade financeira, e pensando em se tornar designer gráfico em São Paulo.
O AdoroCinema conversou com Elias sobre o projeto:
Por que decidiu combinar realismo e fantasia?
Ricardo Elias: A princípio, era uma história tradicional, incluindo o elemento da família que enfrenta dificuldades financeiras e quer vender o terreno para ganhar dinheiro, além de duas pessoas que moravam fora do Brasil e agora voltam para o país. Então nós decidimos colocar o elemento mágico desde o início como algo diferente.
Pensamos que essa ideia da magia seria legal, e então testamos isso de várias formas - algumas mais superlativas, com desejos bem absurdos. Uma hora a gente encaixou porque percebemos que quanto mais simples e banais fossem os desejos, mais eles combinariam com o tipo de história que a gente queria contar. A intenção era traçar quase uma crônica, um conto.
Os elementos mágicos nunca tiram o aspecto realista das imagens.
Ricardo Elias: Sim, isso foi pensado, foi proposital. Desde o início a gente não queria nenhum grande efeito, nem de música, nem visual, quando acontecesse a “magia” do terreno. Tanto que isso permite que um dos personagens, o Orestes (Carlos Meceni), fique totalmente cético em relação à credibilidade da magia. O espectador tem possibilidades: se você quiser embarcar na magia, você embarca, e se não quiser, também não precisa. O filme tem elementos além disso.
Faz sentido para você interpretar Mare Nostrum pelas noções de destino ou coincidência?
Ricardo Elias: Eu não colocaria dessa forma. A gente tem algumas questões de vida, de cotidiano, que você consegue controlar, mas outras não. Você pode pensar um pouco sobre o que aconteceu no seu passado e como as coisas aconteceram, mas você não pode mudar isso. É possível interpretar estas questões de outra forma, e acredito que o filme toque um pouco nisso.
Eu não gosto muito da ideia de passar uma mensagem, sabe? Acredito que apenas contamos uma história e tentamos envolver as pessoas. Sei que o panfleto é algo mais fácil de vender, mas nunca quisemos fazer um panfleto ali, vender algo como “Repense a sua vida” ou “Abdique dos seus sonhos”. Cada um vai onde quiser, na verdade.
Todos os personagens enfrentam crises na família, no trabalho, no amor.
Ricardo Elias: Pois é, eu estava conversando com um amigo meu a respeito. Essa ideia de crise é meio constante: eu lembro na infância que uma hora as coisas estavam bem, e depois estavam em crise de novo. No Brasil a gente vive administrando a ideia de crise, principalmente para quem vive na classe média, que é o meu caso. Aqui as pessoas vivem em uma crise constante, principalmente as mais pobres do país. O que eu queria falar mesmo é sobre o sobe e desce da classe média, que em certo sentido está sempre tentando se reinventar perante essas crises todas.
Os personagens mais frágeis são os homens, enquanto as mulheres são fortes, determinadas.
Ricardo Elias: Sim, as mulheres agem de uma forma mais prática diante da crise, são elas que sustentam tudo. O Roberto é um pai ausente no início, e parte da trama se concentra nele retomando contato com a filha. Você tem isso em alguns filmes: o Kore-eda faz isso com frequência, alguns outros filmes coreanos também. O Hospedeiro aborda o tema do pai retomando contato com a filha. É um tema recorrente em várias cinematografias, e a gente tem uma ausência muito forte da figura masculina no Brasil, então é importante que as mulheres sejam personagens mais fortes mesmo. Elas sustentam tudo, e permeiam essas pessoas.
Como escolheu Silvio Guindane e Ricardo Oshiro para os personagens principais?
Ricardo Elias: Na verdade, eu ainda estava sem protagonista no início. O Silvio se tornou um amigo próximo desde De Passagem. Um dia, enquanto a gente batia um papo, ele me perguntou quem ia fazer o filme e eu disse que não tinha protagonista. Aí ele me disse “Então eu vou fazer”, e eu aceitei. Ele se convidou para o filme e achei ótimo: o Sílvio é um grande ator, que foi criado no cinema, então é muito fácil trabalhar com ele. Para o Ricardo a gente foi testando. Fizemos vários testes até decidir. No Brasil ainda se tem dificuldade para encontrar atores asiáticos, mas isso está mudando aos poucos. O Ricardo faz parte de um grupo de atores, o Coletivo Oriente, que se posiciona contra o whiteface. Além disso, ele é um baita ator.
Você fez muitos ensaios? Permitiu que os atores modificassem os diálogos, as cenas?
Ricardo Elias: Na verdade, foi um misto das duas coisas. Eu tomo muitas decisões durante a filmagem, mas também ensaiei muito neste filme. Trabalhei com a Mariana Guarnieri, que me ajudou na preparação do elenco. A gente teve um cuidado especial com a menina, Lívia Santos. Em determinado momento, todo mundo estava em torno dela ajudando a criar a cena, e isso foi muito bacana. Ela foi um grande achado. Fizemos vários testes, mas quando encontramos a Lívia, a atuação dela foi ótima. Para a nossa surpresa, ela nunca tinha feito nada, esse foi o primeiro filme dela.
Como enxerga a questão do protagonismo negro e asiático no filme?
Ricardo Elias: Na verdade, esta é uma escolha consciente, mas não era uma bandeira do projeto no início, não é algo que eu tinha decidido desde o princípio. Desde o começo a história tinha um protagonista asiático. Depois, com a entrada do Sílvio, a questão do protagonismo negro se definiu. Então foi uma escolha consciente sim, era importante falar disso.
Como vê o sistema brasileiro de produção para um filme intimista como o seu?
Ricardo Elias: Na verdade este filme pôde ser produzido graças a um concurso que foi alterado agora: era a antiga Linha Cinco do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), dedicada a filmes mais experimentais. A gente teve recentemente a inscrição do Fluxo Contínuo, que é quase uma gincana: quem envia mais rápido tem o projeto inscrito, o que é meio absurdo. Existem erros e acertos no Fundo Setorial. Tive dificuldades para me adaptar, e seria interessante que continuassem essa linha para filmes experimentais.