Há mais de 15 anos, quando a Internet ainda era um extenso matagal, o AdoroCinema já desbravava o hostil terreno virtual. Foi naquela época que o site lançou uma de suas primeiras colunas contínuas, a Tirando o Mofo, destinada a revisitar clássicos da sétima arte. Hoje, em tempos de épicos de super-heróis, pode ser difícil lembrar que há uma vida de 123 anos do cinema para além das adaptações de quadrinhos; por isso, a Tirando o Mofo está de volta! Sejam bem-vindos ao primeiro capítulo desta nova fase.
Quem vê Lady Gaga derramar todo seu coração em “Shallow”, essa viciante canção-tema do Nasce uma Estrela de Bradley Cooper, mal sabe que trata-se de uma reencarnação. Da personagem, não da cantora - ainda que este também possa ser o caso, fica a questão para nossos leitores mediúnicos. A Ally de Gaga já foi Esther Hoffman e, antes disso, Esther Blodgett e também Vicki Lester em outras ocasiões.
Nasce uma Estrela (1937)
Direção: William A. Wellman
Estrelado por: Janet Gaynor e Fredric March
Oscar de Melhor Roteiro Original + 6 indicações
A história da “franquia” Nasce uma Estrela e das quatro versões da trama criada por Wellman e Robert Carson - com a colaboração da poetisa e escritora Dorothy Parker - confunde-se com a história de Hollywood como indústria e a dos Estados Unidos nestes últimos dois séculos. Portanto, não é à toa que o filme original, de 1937, tenha sido refeito em três momentos diferentes e que, consequentemente, cada época tenha uma versão para chamar de sua.
Primeiro, obviamente, por causa de sua narrativa de fácil adaptação: qualquer período pode comportar a trajetória de uma garota do interior que decide deixar a casa de seus pais para contar apenas com o talento, suor e lágrimas. Tentando vencer no duro e cruel mundo do showbiz, ela encontra um mentor, um artista mais velho, alcoólatra e anteriormente adorado por todo o público, por quem acaba se apaixonando perdidamente enquanto supera a si mesma em uma carreira de ascensão meteórica. Mas, acima de tudo, Nasce uma Estrela é imortal porque é um retrato da busca pelo Sonho Americano.
Este conceito, aliás, foi propriamente estabelecido em 1931, poucos anos antes do lançamento do primeiro filme. Qualquer um que entrar no site da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos encontrará um pomposo artigo que explica que o Sonho Americano, nas palavras do historiador James Truslow Adams, é sonhar com "uma terra onde a vida deverá ser melhor e mais rica e mais completa para todos, com oportunidades individuais de acordo com suas habilidades ou conquistas". É a epítome da meritocracia: se você trabalhar e der duro o bastante, obterá tudo que deseja.
O ano de 1937, onde conheceremos nossa primeira Estrela, foi particularmente duro para os Estados Unidos. Após dois ou três anos de crescimento econômico, a perspectiva de finalmente deixar para trás a Grande Depressão, como ficou conhecida a crise econômica provocada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, já era palpável. Mas aí veio a recessão, que fez com que inúmeras famílias retornassem ao terreno da miséria e da pobreza. E qual era o lugar mais distante desse pesadelo vivo? Hollywood.
Apaixonada pelas maravilhas da sétima arte, como todo bom estadunidense médio da época, Esther Blodgett (Gaynor) desembarca em Los Angeles com a roupa do corpo e um sonho na bagagem. Ela é uma jovem comum, como eu ou você, saindo da multidão, totalmente desconhecida.
Quando chega à Cidade dos Anjos, a primeira coisa que a aspirante a atriz faz é visitar a Calçada da Fama. Ah, a Calçada da Fama! As estrelas! As premiações! O Oscar e o hotel de quinta categoria e a dificuldade em conseguir uma vaga como figurante e o emprego como garçonete de uma festa de celebridades. Não, não era esse o Sonho Americano de Esther: o que Adams esqueceu de avisar em sua definição do conceito é que também é preciso ter uma boa dose de sorte na vida: a boa fortuna e a preparação, diz um livro de auto-ajuda cujo nome fugiu à mente deste colunista, são os ingredientes para o sucesso.
Em outras palavras, é preciso estar no lugar certo, na hora certa e ser a pessoa certa - que é exatamente o caso de Esther quando Norman Maine (March), um astro em decadência e com sérios problemas de bebida, a descobre na festa. Bastam algumas cenas e pouquíssimo tempo de tela e Esther Blodgett torna-se Vicki Lester, a maior estrela de Hollywood do momento.
Contudo, o alerta da avó da protagonista ressoa em nossos ouvidos: "Lembre que os sonhos se pagam com um coração partido". Brega, porém verdadeiro. Por mais que o filme de Wellman glorifique Hollywood no fim das contas - a ascensão relâmpago da jovem Esther, a inexplicável bondade de um chefe de estúdio -, é impossível deixar de considerar que o paraíso nem sempre é tão bom quanto parece. Mesmo quando o escapismo inerente nos desvia a atenção, Nasce uma Estrela não deixa de ser um conto de advertência - que, de quebra, antecipa em 13 anos o clássico de Billy Wilder, Crepúsculo dos Deuses.
É quando Maine toma sua decisão final - vamos parar por aqui para evitar spoilers - que testemunhamos a real natureza de Nasce uma Estrela: esta é a tragédia hollywoodiana por excelência. Vemos no olhar do protagonista e no choro de desespero da ótima Gaynor, ambos ironicamente indicados ao Oscar, a antecipação do cinismo dos films noir dos anos 1940 e da Segunda Guerra Mundial. É a derrota da ingenuidade pela dureza da realidade - e que enlouquecedor deve ter sido ver este filme à época do ponto de vista de um público mimado por finais felizes e pelos cachinhos de Shirley Temple.
Nasce uma Estrela (1954)
Direção: George Cukor
Estrelado por: Judy Garland e James Mason
6 indicações ao Oscar
Mas o que já está ruim sempre pode piorar, como comprova a melhor versão de Nasce uma Estrela até agora. E por mais que esta primeira refilmagem seja oficialmente uma encomenda da estrela de O Mágico de Oz para marcar seu retorno aos musicais após quatro anos de sucesso nos teatros e de lutas contra seus vícios, há muito mais do que uma história de regresso ao topo neste remake.
Enquanto o Nasce uma Estrela original traduziu as ansiedades da Era de Ouro de Hollywood, o segundo longa foi lançado logo após o fim da brutal Guerra da Coreia - que vitimou mais de 50 mil estadunidenses, sem contar com as milhões de baixas sofridas pelas outras nações envolvidas. Para complicar ainda mais, os conflitos raciais e sociais que marcariam a década de 1960 já despontavam nos Estados Unidos e a indústria cinematográfica perdia espaço para a televisão.
Por outro lado, é fato que a nação norte-americana saiu da Segunda Guerra Mundial ainda mais rica e potente. O Sonho Americano, por sua vez, parecia muito mais tangível. Os subúrbios perfeitos, as famílias perfeitas, os dias perfeitos, as vidas perfeitas: tudo isso parecia estar ao alcance dos estadunidenses, mesmo com a complexa, sombria e violenta realidade ao seu redor. E que forma melhor de simbolizar tantas contradições do que transformar Nasce uma Estrela em um musical extravagante?
Adicionando 1h20 a mais à trama original, Cukor deu mais corpo à narrativa, dando a si mesmo o luxo de construir números musicais minuciosos só para traçar a jornada da Esther de Garland rumo ao estrelato. Graças à nova mobilidade das câmeras cinematográficas, o cineasta pôde adicionar as paisagens de Los Angeles à trilha de ascensão e queda. Com suas noites iluminadas e seus sóis poentes, a Cidade dos Anjos ganhou uma importância ainda maior. Meio fabricado e meio realista, o Nasce uma Estrela de 54 tem um quê de devaneio e um quê de dureza.
Tal evolução permitiu que o roteirista Moss Hart mantivesse grande parte das sequências e motivações do original, mas também as ampliasse em escopo, significado e qualidade. Na década de 50, por exemplo, Esther já faz parte da indústria do entretenimento, ainda que como uma cantora de orquestra de pouco reconhecimento. Ela não é mais a heroína ingênua: agora é a artista preparada para perseguir uma carreira de sucesso - com um empurrãozinho de Maine, é claro.
Nesta releitura, portanto, os protagonistas já são engrenagens da máquina cinematográfica, cujas faces ocultas são evidenciadas por Cukor desde o início - o publicista Matt Libby, por exemplo, revela que odeia Maine já no primeiro ato, ao invés de descarregar sua fúria no falido ator no terço final da narrativa, como acontece no longa original. Desse modo, o realizador embarca na tragédia mais cedo: o sonho escapista da Esther de 1937 dá lugar ao sonho consciente de Esther em 1954, vivida por Garland como uma mulher mais determinada e independente - e adiantando a feminista versão de Barbra Streisand, em 1976.
Garland, que incorpora à perfeição o papel de heroína trágica, brilha neste musical; é incrível como ela se impede de pronunciar os sentimentos ruins que tomam conta de sua alma e é incrível como respira profundamente antes de aceitar seu destino. Mason, por sua vez, é igualmente formidável, tanto quanto March. Juntos, os dois trazem à tona os sentimentos sobre os quais Cukor estabelece seu filme: este Nasce uma Estrela tem o charme de uma banda de jazz, o sabor do uísque no fundo da garrafa e a sensação de se assistir ao apagar de um cigarro.
É por isso que esta refilmagem supera o original: ao invés de apenas representar o ápice do Sonho Americano, este Nasce uma Estrela destrincha o conceito. A jornada ao olimpo de Los Angeles é possível e gera lendas emocionantes e inspiradoras: são inúmeros os casos de atores e atrizes que conseguiram atravessar as dificuldades para se tornarem astros. O verdadeiro desafio, entretanto, é manter-se no topo da "fábrica de sonhos", um meio corrupto cujas pressões levam os Norman Maines do mundo ao fundo do poço. E Cukor, genialmente, escolhe Libby, justo Libby, para entregar o resumo da ópera: "É assim que o mundo acaba. Não com uma explosão, mas com um sussurro".
Nasce uma Estrela (1976)
Direção: Frank Pierson
Estrelado por: Barbra Streisand e Kris Kristofferson
Oscar de Melhor Canção Original + 3 indicações
Ainda que Hollywood simbolize à perfeição a ilusão causada pelo Sonho Americano com sua superfície brilhante e suas profundezas trágicas, há um ambiente ainda mais nocivo: o dos rock stars dos anos 1970. Por isso, os roteiristas John Gregory Dunne, Joan Didion e Pierson levaram Nasce uma Estrela para Woodstock, em 1976.
Com a decadência do velho sistema de Hollywood, demonstrado pela rebeldia dos cineastas da Nova Hollywood, movimento do qual Pierson (roteirista de Um Dia de Cão) fazia parte, não havia sentido manter Nasce uma Estrela dentro dos quintais dos estúdios. Era necessário expandir a estrutura, tornar-se mais urbano e tomar os espaços ao ar livre, especialmente por causa dos ideais de paz e de comunhão com a natureza pregados pelos hippies, que são parte crucial desta segunda refilmagem.
Todavia, ao analisar Nasce uma Estrela, não podemos esquecer que os anos 1970 complicaram ainda mais a noção do Sonho Americano, principalmente por causa do fiasco da Guerra do Vietnã e da destituição de Richard Nixon em decorrência do escândalo Watergate. Assim, as contradições entre as esperanças hippies e feministas e a pura descrença nas instituições democráticas e sociais é o ponto de equilíbrio do terceiro Nasce uma Estrela.
A partir da infinidade de novos estímulos encontrados e vivendo em meio a um contexto completamente distinto ao de 1954, os corroteiristas da versão de 1976 praticamente não tiveram escolha a não ser tentar subverter a narrativa originalmente escrita por Wellman e Carson nos anos 1930. No que se refere aos personagens, por exemplo, Norman Maine é transformado em John Norman Howard (Kristofferson, em uma interpretação pobre, para dizer o mínimo), um vocalista e guitarrista rebelde atormentado pela bebida e que frequentemente antagoniza o seu próprio público.
Esther Hoffman (Streisand, em uma performance inesquecível), por sua vez, tem mais do que o seu sobrenome alterado. O destaque, de fato, é a mudança da postura da protagonista. Nesta reencarnação, a cantora não é mais uma jovem ingênua ou uma mulher que, no fim das contas, acaba assumindo o nome de seu marido. Não há mais, em outras palavras, a Sra. Norman Maine: estamos diante de uma personagem completa e felizmente influenciada pelas conquistas feministas dos anos 1960 - da qual Didion, uma das escritoras de Nasce uma Estrela, foi uma figura importante.
Sem a aura de inocência que, de certa forma, protegia toda a empreitada ao redor da história, os autores aproveitam a brecha para revolucionar outros pontos focais. Distante de Hollywood e da influência sedutora da indústria cinematográfica, o drama musical não precisa mais glorificar os estúdios de Los Angeles. Além disso, a relação sexual entre os personagens é infinitamente mais clara e explícita. Nos anos 1970, os dias de puritanismos e grandes repressões já se encontravam consideravelmente distantes.
Contudo, a fórmula vencedora de Nasce uma Estrela acaba recebendo uma interpretação equivocada. O romance - bastante nocivo, diga-se de passagem - entre Esther e Howard é diluído e a ascensão da cantora é pouco desenvolvida. Sem o conflito entre os dois âmbitos da vida da protagonista, Nasce uma Estrela perde seu núcleo: a combinação de tragédia realista e romantismo. Para construir uma refilmagem desta trama, é preciso começar com um sonho, por mais que este seja hoje um devaneio falido. É "melodramático sem ser convincente", como definiu a lendária crítica Pauline Kael.
Críticas à parte, o que o renascimento constante do filme de 1937 demonstra é que o Nasce uma Estrela de Cooper e Gaga não será o último; daqui a 15, 20 ou 30 anos, um produtor de Hollywood fará renascer a ideia de refilmar a trama de Wellman como se tivesse inventado a roda. Esther/Ally será, quem sabe, uma influenciadora digital e Norman terá outros vícios - talvez em redes sociais, pornografia e/ou remédios tarja preta. Especulações são inúmeras, mas não muito relevantes agora. O que é certo, de uma forma ou de outra, é que Nasce uma Estrela sempre retornará - e o motivo para isso é simples.
A razão pela qual toda era estadunidense terá seu Nasce uma Estrela é justamente o fato desta narrativa ressaltar algumas das contradições fundamentais de sua nação - e isto não é possível fazer em tempos de guerra. Portanto, em períodos de paz fragilizada, de estabilidade delicada, de contextos ameaçados por administrações dignas de apresentadores de reality shows, surgirá este conto hollywoodiano que é uma crítica e uma apologia ao sistema; um afago e uma cusparada, escapismo e tragédia. Que é, enfim, o retrato da ascensão e, ao mesmo tempo, da decadência. Os dois lados de uma só moeda, americana.