Os irmãos Jérémie Renier e Yannick Renier são conhecidos principalmente pelo trabalho como atores. Jérémie recebe mais atenção, devido à parceria com os irmãos Dardenne, mas Yannick também conquista alguns papéis de destaque. Para o primeiro filme da dupla como diretores, eles escolheram uma história muito pessoal: a rivalidade entre duas irmãs atrizes, uma mais famosa do que a outra.
Carnívoras traz Leïla Bekhti e Zita Hanrot nos papéis principais. A primeira, tímida, torna-se assistente da segunda, a musa de um diretor autoritário. Enquanto Sam participa das turbulentas filmagens de Justine, adaptação de Marquês de Sade, Mona começa a pensar que se encaixaria muito melhor no papel. Até onde vai a disputa entre elas?
Durante o Festival Varilux de Cinema Francês, Yannick Renier e Zita Hanrot vieram ao Brasil e conversaram com os jornalistas. Descubra o nosso bate-papo exclusivo sobre Carnívoras, em cartaz nos cinemas:
O roteiro de Carnívoras foi escrito inicialmente como uma comédia. De que maneira transformou a história num suspense?
Yannick Renier: Passamos da comédia ao suspense psicológico porque o roteiro demorou a ser finalizado. Eu e Jérémie passamos muito tempo trabalhando como atores. Por isso, foi uma longa gestação. Creio que o projeto cresceu, se desenvolveu e nós nos distanciamos. Queríamos conquistar este olhar de fora, como atores, e ao mesmo tempo nos aproximar das coisas tão profundas que podem ser compartilhadas por duas irmãs. Esse sentimento profundo tem algo de muito trágico. É um paradoxo: o amor que temos por uma irmã e, ao mesmo tempo, esse medo, esse ódio do outro. O suspense nos interessava por causas das possibilidades de direção. Nós queríamos criar uma distância entre o espelho da nossa própria relação de irmãos.
Sam pode ter algumas atitudes controversas, mas o roteiro nunca a critica por isso.
Zita Hanrot: É isso que me interessa nas personagens: quero compreendê-las, não julgá-las. Ao meu ver, esta personagem é muito tocante. Existem paralelos entre a vida dela e a minha, porque também sou atriz desde a juventude. Então, compreendo porque ela age daquela maneira no set de filmagem, porque é tão dura com o marido, porque se relaciona daquela forma com os outros. Os outros projetam uma imagem nela, mas ela não quer corresponder a essa projeção. É por isso que, ao meu ver, ela deseja se libertar do olhar dos outros. Meu trabalho consiste em justificar todas as ações dela, mesmo que eu não aprove todas elas. Fico irritada quando as pessoas dizem que San é má, porque ela não é assim. Ela é forte e que faz coisas que são difíceis para os outros.
Yannick Renier: Essa foi uma questão recorrente durante a criação do roteiro. Tínhamos que saber até onde poderíamos ir porque a personagem de Zita precisa ser, até certo ponto, um pouco detestável, fazer coisas irritantes. O ato de escrever permite certas coisas, mas tenho que levar em consideração que o roteiro será interpretado por uma atriz. Sam pode ter um comportamento incômodo e irritante mas, se ela, ao ao mesmo tempo, tiver algo de frágil, podemos criar empatia com o espectador. Queríamos que o espectador se sentisse dividido, em função de suas moralidades e afinidades, entre as duas irmãs. O objetivo era esse: equilibrar o espectador entre o amor e a repulsa pelas atrizes e por suas personagens.
As duas irmãs são construídas como opostas. É engraçado ver Sam interpretando Justine, enquanto Mona parece ter nascido para o papel.
Zita Hanrot: Yannick e Jérémie buscavam exatamente isso. Sam, em sua vida privada, é uma pessoa espontânea, que não se submete a ninguém. Mas nas filmagens, quando vai interpretar uma personagem, ela se torna completamente submissa. Então as coisas dão errado, tanto na vida da Sam quanto no filme em que ela trabalha. É engraçado perceber que a personagem interpretada por Sam, no decorrer do filme, me pareceu mais acessível do que a própria Sam.
Yannick Renier: Isso é muito doido porque aconteceu a mesma coisa com o filme de Paul Brozek (Johan Heldenbergh), ou seja, o filme dentro do filme. Tínhamos que filmar em preto e branco, foi ótimo. Estávamos mais confortáveis fazendo o filme de Paul Brozek do que o nosso! Ao mesmo tempo, Zita é uma atriz mais experiente agora do que na época do drama Fátima (2005). Ela interpreta alguém com sentimentos exacerbados, que afirma sua sexualidade e se doa de corpo e alma. Isso é muito perigoso porque não existem limites. No filme, a personagem está completamente a serviço do que quer mostrar, e por isso é manipulada pelo diretor.
A escolha do elenco é interessante, porque Leïla Bekhti está acostumada a papéis de mulheres explosivas, enquanto Zita Hanrot fez mais personagens tímidas. Aqui, o jogo se inverte.
Yannick Renier: O que é verdadeiramente apaixonante sobre estas atrizes é que o fato de compartilharem uma personalidade de atriz. Nós conhecemos a Zita ao assistir ao Fátima, mas aquela Zita não é a atriz da vida real. Existem lugares em que os atores podem ser de uma determinada maneira na vida, mas quando vão atuar, é completamente diferente.
Zita Hanrot: É isso mesmo. Tem um lado obscuro do qual devemos manter distância. Posso me transformar na minha personagem se eu ficar louca um dia. Sei que posso me comportar de maneira inquietante, mas não é tão simples assim fazer isso na frente de várias pessoas no set de filmagens.
Yannick Renier: Ao mesmo tempo, Leïla Bekhti é transparente, muito simples, carinhosa, extremamente receptiva. No filme, ela não é assim. Trabalhamos muito a parte física com ela porque Mona é retraída. Trabalhamos o olhar dela sobre as coisas. O nosso trabalho foi o de guardar informações, manter o mistério. Foi interessante ver Zita e Leïla trabalharem com personagens cujas personalidades são muito diferentes das delas. Às vezes, nós temos que exacerbar as personagens, mas também queríamos manter a personalidade de Zita, porque assim poderíamos atingir algo mais complexo.
Carnívoras pode ser lido como um retrato da dominação masculina no cinema?
Yannick Renier: Isso acontece. De fato existem diretores como Paul fazendo filmes hoje em dia. Mas nós não queremos denunciar uma situação ou necessariamente mostrar a dificuldade das atrizes, e sim discutir a dificuldade das mulheres em uma situação familiar opressora. Isso faz com que Sam queira fugir, e o mundo do cinema permite isso. Mas em todos os lugares existem relações de poder perversas que esgotam as pessoas. Para nós, o cinema foi uma forma de falar sobre os fetiches de Mona. Existem poucos meios que provocam tantos fetiches quanto o cinema, e Mona vive sonhando. Por isso escolhemos uma direção de arte pouco realista. Criamos um sonho, mas ela vive em um pesadelo. O que nos interessava era mostrar que, mesmo estando em uma situação em que não temos o direito de reclamar, a dor é real. É ligada à profissão e a um lugar inextricável, do qual ela não pode reclamar, nem pode sair. Ela carrega uma culpa dupla. Ela sofre, mas ao mesmo tempo não pode dizer isso. A situação provoca uma explosão.
Zita Hanrot: Curiosamente, depois de ver o filme várias vezes, descobri que ele é muito mais social do que pensávamos. É sobre as condições de trabalho, sobre as mulheres… É genial. Gosto muito do filme.