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    Camocim: "A gente queria mostrar a indignação das pessoas com a política", explicam Quentin Delaroche e Mayara Gomes (Exclusivo)

    O retrato da política brasileira numa cidade nordestina.

    Em tempos de eleição, chega aos cinemas um documentário que dialoga bem com o cenário brasileiro: Camocim, de Quentin Delaroche. O cineasta acompanhou a campanha a vereador na pequena cidade de Camocim de São Félix, em Pernambuco. Lá, descobriu dois grupos antagônicos: os Azuis e os Vermelhos, que se enfrentam num conflito violento e longe do debate de ideias.

    Para retratar o funcionamento da política nesta região, o cineasta se concentrou na figura de Mayara Gomes, jovem engajada que faz campanha para o amigo César. A câmera de Delaroche acompanha os debates entre os jovens, as brigas e as festas organizadas para atrair novos eleitores.

    O AdoroCinema conversou com Quentin e Mayara sobre este microcosmo da política nacional:

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    Por que decidiu se concentrar na cidade de Camocim de São Félix?

    Quentin Delaroche: Três anos atrás eu comecei uma pesquisa, e tinha o desejo de retratar o interior do Pernambuco, principalmente a herança do coronelismo e as gerações de dominação no sistema político atual. Eu tinha várias ideias de filmes e documentários diferentes, e passei um tempo no interior de Pernambuco, quando me dei conta que todas as pessoas com quem eu conversava em algum momento falavam de política, davam sugestões, falavam do “meu” prefeito, “meu” vereador e tal.

    Percebi que a política tem uma presença muito forte na vida das pessoas no interior, e decidi fazer um filme sobre uma campanha política. Camocim de São Félix tem um histórico de grande violência política, incluindo tiroteios dignos de um faroeste. A ideia era retratar de forma mais ampla a cidade, com vários personagens diferentes. Um mês antes do começo da campanha, eu por acaso encontrei Mayara no meio da praça. Ela estava debatendo política com um amigo, e fiquei encantado com o carisma dela, com as ideias, o desejo de mudar e de fazer política de verdade.  

    A sua protagonista representa um dos lados da eleição, os Azuis. Pensou em procurar alguém entre os Vermelhos também?

    Quentin Delaroche: Na verdade, eu nem associei muito a Mayara com os Azuis. Eu estava do lado de Mayara, nem dos Azuis e nem dos Vermelhos, porque na verdade dá um pouco no mesmo. A gente observa um esvaziamento ideológico, então o Azul não quer dizer direita, e o Vermelho não quer dizer esquerda, tanto em Camocim quanto em várias outras cidades do Brasil. Para mim, a Mayara não tinha lado, até porque quatro anos atrás ela fazia campanha para o outro lado.

    Mayara Gomes: Na eleição anterior, eu estava com os Vermelhos, fazia campanha para eles, e agora eu estava nos Azuis porque era o palanque em que meu candidato a vereador subia. Mas eu não sou muito da cor, o que me importa é a ideologia. Quando a gente propaga algo melhor, tentamos fazer com que isso vire realidade. Eu não vi isso na antiga gestão, e acabei descobrindo uma proposta muito melhor para a cidade, que a gente acabou seguindo.

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    Você acreditou que a presença da filmagem pudesse de alguma maneira influenciar a campanha e as eleições?

    Mayara Gomes: No começo, quando ele me trouxe o projeto, fiquei meio assustada porque eu nunca tive uma câmera me seguindo a todo momento. Mas quando a gente começou a gravar, a visitar as casas das pessoas, as pessoas não se intimidavam com o Quentin, elas aproveitavam para dizer o que queriam e como queriam que aquilo fosse feito. Então não acredito que isso tenha trazido mais ou menos votos para César.

    De certa forma, o filme deu mais credibilidade para nossa campanha, porque tudo que era proposto pela população estava sendo filmado, como se existissem provas do que a gente fez. Se o César tivesse sido eleito, e a gente não cumprisse as propostas, as pessoas teriam muito mais coisas para questionar. Quando os moradores de Camocim virem o filme, muita gente vai perceber suas próprias falhas, ou se sentir muito orgulhoso por ter defendido ideais em que acreditava.

    Vocês tinham algum tipo de restrição, algo que não queriam filmar para preservar as pessoas envolvidas?

    Mayara Gomes: Não, foi muito tranquilo. Quentin nos seguia sempre, mas a gente nunca falou “Não pode filmar isso aqui”, porque a gente queria mostrar a indignação das pessoas com a política, o que elas pediam ou deixavam de pedir, e como se relacionavam com uma nova proposta, jovem e ativa.

    Quentin Delaroche: Os cortes que eu fazia buscavam ser o mais próximos possível da experiência que eu vivi, de como eu me senti durante essa campanha. Então não tinha muita coisa para esconder, e nem era uma proposta de denúncia. Filmei coisas que podiam ser ruins para certos candidatos, mas não estava procurando isso, não era o foco do filme.

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    Acredita que o panorama de Camocim reflita as campanhas políticas no Brasil como um todo?

    Quentin Delaroche: Sim e não, porque os grupos do filme, o Azul e o Vermelho, não são a direita e a esquerda, então o paralelo não é válido. Mas a relação é possível no que diz respeito às relações de poder, à personificação do candidato.

    Mayara Gomes: Camocim é um pequeno espelho do que acontece nacionalmente, pela devoção aos candidatos. As pessoas acabam se doando absurdamente para isso. Eu vejo de certa forma como algo equivalente. Na época em que gravamos, já se cogitava o impeachment de Dilma, mas poucos candidatos abordaram a questão de se tirar a legitimidade de uma mulher na presidência. Isso mostra que o nacional não afeta tanto, mas o municipal consegue atingir o nacional porque as pessoas personificam seus candidatos, tratam como santos, heróis, abraçam e beijam sem saber a fundo quem eles são.

    Quentin Delaroche: Essa relação passional com a política não é tão forte nas capitais, porque não tem passeatas dessa forma, todos os dias. Algo representativo também é a bipolarização: não tem diálogo político entre uma torcida e outra, cada um tem a sua posição e não quer ouvir o outro lado. Isso reflete bem o que acontece hoje em dia.

    Mayara Gomes: Às pessoas não conseguem ouvir os motivos uma da outra. Por mais que eu não esteja de acordo com seu voto, com o seu candidato, tenho que respeitar seu direito de ir à urna para votar. Eu preciso ouvir e respeitar, mesmo que não esteja de acordo. O diálogo é necessário, porque muitas pessoas sequer exercem o direito de votar, e esse é o problema mais grave.

    É curioso ver no filme que nenhum candidato debate propostas. As promessas geram em torno de retóricas vagas: cada um promete ser o "novo", a "mudança", a "transformação para melhor".

    Quentin Delaroche: Observei que no palanque não se fala de proposta, são apenas discursos demagógicos num jogo muito hipócrita. A compra de votos é ilegal, então um acusa o outro de comprar votos, mas a gente sabe que todo mundo compra votos, e que a maioria das decisões dos eleitores é influenciada pela compra de votos. Sobre o César em particular, é lógico que para fazer esse filme eu filmei um projeto amplo durante dois meses de campanha. Não era um filme sobre a campanha de César, nem sobre Mayara Gomes. Eu sabia que ela teria uma importância no filme, mas não era sobre eles. Eu tinha oitenta horas de material, e a maior parte do que eu filmei com a Mayara está no filme.

    Mayara Gomes: A gente tinha um projeto do Parlamento Jovem, para fazer os jovens frequentarem mais a Câmara dos Vereadores para ver a função real de um vereador na nossa cidade. Essa era a nossa ideia principal: conscientizar os jovens. O vereador não traz empresas, não dá emprego. Ele fiscaliza e direciona verbas, ele tem que observar se as necessidades da população estão sendo supridas. Claro, nós tínhamos outras propostas também, como a sinalização das estradas rurais, e fazer com que o transporte universitário fosse totalmente legalizado.

    Quentin Delaroche: A intenção não era fazer um retrato didático sobre como funciona a campanha e quais são as propostas dos candidatos, era mais trazer um retrato sensível de uma realidade. Por isso as propostas não aparecem tanto no filme.

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    A política em Camocim é curiosa, regada a grandes festas, álcool, trios elétricos.

    Quentin Delaroche: Pois é, esses desfiles acontecem todos os dias: um dia para os Vermelhos, e o outro dia para os Azuis. O tempo do desfile é cronometrado para ver quantas pessoas estavam lá, e destes dados deduzem a intenção de voto. São outros parâmetros.

    Mayara Gomes: Na campanha, a gente nunca participou deste circo. A gente nunca fez um desfile, por ser uma campanha simples, mais pé no chão e boca a boca. Então a gente não se preocupou em fazer esse carnaval todo. O nosso objetivo era ouvir as pessoas, o morador do bairro, da cidade, saber as necessidades, pontuar e ver como a gente poderia ajudar.

    Como veem o papel das redes sociais nas eleições?

    Mayara Gomes: A mídia lá é bem pesada, ela consegue eleger um candidato. A gente atinge muitas pessoas com a rede social, porque todo mundo tem e todo mundo dedica um momento para assistir a algum vídeo. A rede social é a evolução da campanha política. Hoje você não precisa ter militantes segurando bandeira ou panfletando: você tem uma rede social, alimenta ela todos os dias, e tem um feedback.

    Quentin Delaroche: Ao mesmo tempo, em Camocim a rede social é a única mídia. Não tem televisão, não tem rádio. Mas as redes sociais são um ambiente complicado, porque não facilitam o debate de ideias. Se na vida já é difícil ter diálogo, nas redes sociais a coisa se torna ainda pior, porque não existe filtro.

    Mayara Gomes: É verdade. Hoje em dia as pessoas se xingam, e fica visível a intolerância à ideia do outro. Então você vai lá e xinga o outro nos comentários, e acaba virando uma briga, não um debate de ideias. A compaixão pelo próximo fica ainda mais distante. Pessoalmente, eu posso ver se o que falei te deixou magoado, mas na rede social eu não posso saber como isso te afetou.

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