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    Festival de Gramado 2018: "Só estou aqui hoje porque existiu um Simonal na História", diz Fabrício Boliveira (Entrevista Exclusiva)

    Ator fala sobre racismo e a responsabilidade de dar vida ao cantor de "Sá Marina" e "Nem Vem Que Não Tem".

    "Destronaram um rei [Simonal] e o rei virou Roberto Carlos", declarou Fabrício Boliveira na coletiva de imprensa de Simonal no Festival de Gramado. A injustiça racial é um dos temas da cinebiografia dirigida por Leonardo Domingues, e em entrevista ao AdoroCinema o ator, atualmente na novela Segundo Sol interpretando Roberval, falou sobre a preparação para interpretar o músico e seu papel como um dos raros atores negros em evidência no audiovisual brasileiro.

    AdoroCinema: Qual era sua referência do Simonal antes de entrar no projeto? Você conhecia ele como delator ou como um astro que foi derrubado por ser negro?

    Fabrício Boliveira: Eu já desconfiava dessa [última] informação, mesmo porque pensando em um negro rico nesse país e todo mundo acusando ele de delação, eu já desconfiava. Mas eu vi o documentário e é evidente, fica muito explícito que tem uma questão séria racial, [...] então já dava para entender que tinha muita coisa para vasculhar, muito espaço. E o Max [de Castro] tinha feito a trilha do 400 Contra 1, então eu conhecia muito o Simonal de ouvir histórias que ele contava, de música, de tudo.

    Me perguntaram isso nesses dias sobre a minha relação com o Simonal e eu tenho uma relação de ancestralidade. É interessante porque eu sou um artista negro nesse país também, então de algum jeito parece que a trajetória dele chegou na minha, parece que eu só estou aqui hoje porque existiu um Simonal na História, então vou começar a dizer daqui para a frente que eu tenho DNA do Simonal.

    AC: Você está em Vazante, que gerou aquele enorme debate no Festival de Brasília ano passado, está também na novela Segundo Sol, que quando foi lançada gerou toda uma questão sobre o embranquecimento da Bahia, então eu queria que você falasse desse seu lugar, que é raro, de artista negro em evidência no Brasil.

    FB: É uma raridade e isso é um problema, porque eu não estou aqui para ocupar um lugar sozinho e ser o cara, eu quero que toda essa história se modifique, porque a gente vê uma injustiça social. Eu cresci vendo isso, vendo pessoas em lugares que não deveriam estar ou que eram impostos para elas, sem poder circular com liberdade. O que falta neste país é dignidade e liberdade. Eu fico feliz de estar trazendo essas questões de algum jeito, fazendo com que fiquem evidentes, fiquem claras para que a gente possa falar delas com força, mas ainda não é satisfatório. É uma questão que eu percebo que agora que começa a ficar um pouco mais além do negro. Antes era só minha, agora eu já conigo encontrar meus amigos negros, formar um grupo e a sociedade começa a abrir o olho, despertar. Temos muita coisa ainda para mudar, muita coisa para poder discutir e para aprender. Tem um movimento negro neste país que está intelectualizado, com referências teóricas e de vivência, e que o povo brasileiro não está preparado. Acabaram de perguntar se eu acho que a temática do Simonal é como a temática do Pantera Negra, e não! A gente está muito atrás, a gente ainda está discutindo o lugar do negro na sociedade, o Pantera Negra está falando da diversidade entre os negros, diversidade cultural, várias tribos africanas... A gente não teve nem tempo de chegar lá, ainda temos um corre enorme para fazer. Eu ainda não estou realizado ou feliz. Talvez um pouco mais tranquilo, porque sinto que esse grito está ecoando mais.

    É bom entender que foi importante o Vazante ter chegado naquela discussão. Para mim a grande importância do filme, mais do que o próprio filme, é a discussão que foi gerada; para mim nada é mais importante para a arte do que abrir e gerar discussão. E foi um ponto de mudança na história do cinema, eu sinto isso hoje, a gente fala disso hoje, aquela história que iniciou em Vazante e reverbera na novela, reverbera com Simonal... Sabe o que isso me faz pensar? Que o corpo negro ainda é um corpo político, já é um corpo político e ainda carrega essas discussões dentro dele. Só a minha presença ali, naquela novela, já abriu [a discussão]. Claro, todo mundo via que faltava, que não tinha um contingente, só tinha um, mas [...] abriu uma uma discussão interna também. Então é um momento de modificação em que a gente tem que estar muito conectado nas ações e nos discursos. Para além de ficar só assistindo, a gente tem que agir.

    AC: Por que você quis fazer esse filme?

    FB: Porque eu acho que essa história não foi resolvida ainda. O documentário tem uma coisa muito delicada: ele mostra cenas de um filme que o Domingos [Oliveira] fez com o Simonal e o Simonal odeia esse filme, brigou no meio e começou a refazer porque descobriu que o diretor estava tentando fazer um filme sobre uma estrela louca e arrogante. São essas imagens que estão no documentário e aí paira essa ideia do Simonal sendo um cara arrogante. E por que arrogante? Porque é um negro com poder? Então a gente precisava voltar nesse assunto, alguma coisa ficou. Eu não acredito que exista uma verdade absoluta, mas volta com temas que são supernecessários discutir hoje, como fake news, racismo, polarização política, ditadura, a possível volta da ditadura, Bolsonaro... Então eu acho que é supercontundente a gente contar essa história de novo.

    AC: E como você encontrou essa “pilantragem” do Simonal? Você apresenta um trabalho de movimentação corporal muito interessante e, apesar de fisicamente não ser imediata sua ligação a ele, o jeito como você anda e fala no filme representam totalmente o Simonal.

    FB: Têm duas coisas super engraçadas sobre isso. Uma é que eu não queria fazer uma imitação do Simonal, não me dá prazer imitar alguém ou fazer um filme onde tenha tanto virtuosismo, onde meu trabalho esteja na imitação ou em como eu sei fazer bem alguém. Isso nunca me interessou. Apesar de filmes que eu gosto, como Piaf, nunca foi meu tesão como artista. Meu tesão é criar questão, é entrar, aprofundar, vasculhar e mostrar aquilo que não foi visto, aquilo que não foi dito. Esse jeito do Simonal a gente já tem no Youtube, o cara cantando e tudo mais, então para que refazer isso se a gente já tem o original? Comecei a vasculhar o que tinha de intercessão entre a minha história e a história dele, descobrir o que é um negro artista brasileiro, quais são as dificuldades, quais são as alegrias, o que tem de vantagem... Eu foquei realmente no conteúdo e na essência [...]. Um artista que é impedido de exercer sua arte por conta de uma mentira, isso é muito sério.

    A segunda coisa engraçada é que a gente é negão neste país, a gente já traz coisas dentro do nosso imaginário, que a gente já viu, então eu tenho isso dentro de mim. É aquilo que a gente falou sobre o Pantera Negra, a gente vê que ali tem uma diversidade, mas tem uma coisa que une, o que é a minha história com o Simonal também. É muito legal ver tudo isso e o nível de conexão que a gente tem, então seria uma bobeira eu ficar pensando na forma, no jeito do Simonal. E de algum jeito a pilantragem tem muito a ver com a resposta a uma pressão que tinha naquele cara, de algum jeito era a válvula de escape dele, e talvez seja a válvula de escape que a gente tenha hoje, negro, no mundo.

    Simonal tem estreia prevista para 2019.

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