O Cine Ceará adota um costume bastante saudável, comum aos festivais de cinema, de promover debates entre os diretores dos filmes selecionados e a imprensa presente. Após a exibição de O Barco, na noite de 4 de agosto, a manhã seguinte proporcionou o encontro entre o cineasta Petrus Cariry e sua equipe com jornalistas do país inteiro.
A conversa foi esclarecedora, especialmente em se tratando de um filme aberto a múltiplas leituras. Cariry é um homem articulado, claro em suas intenções e de uma franqueza admirável. Diante de perguntas pertinentes, ele explicou o seu processo de criação, a origem de certas metáforas, a maneira particular de enxergar o corpo feminino, o processo de filmagem da natureza, a seleção das imagens, a construção da luz e o trabalho com o atores.
Eu já tinha gostado do filme, e terminei o debate gostando ainda mais deste projeto cujo universo tinha se expandido para mim. A minha impressão inicial era de me perder numa natureza labiríntica, junto dos personagens um tanto herméticos, através de uma construção sedutora de atmosferas (leia a nossa crítica). Ao final da sessão, novas ideias férteis foram plantadas por Petrus, pela produtora Barbara Cariry e pelos atores Verônica Cavalcanti e Nanego Lira.
Alguns desses fatores são reconfortantes quando coincidem com nossas interpretações pessoais - como se a impressão do crítico fosse de certo modo validada pelas intenções dos criadores -, enquanto outras deixaram a impressão de oportunidade perdida: como eu não tinha percebido aquela metáfora antes? Certamente, se eu escrevesse o artigo após essa conversa, o conteúdo seria outro, e a nota atribuída ao filme também mudaria. O texto ficaria mais rico, mas não conteria apenas ideias minhas. Ele perderia seu caráter afetivo, seu aspecto de resposta pessoal a impressões muito fortes, tornando-se uma reflexão embasada, fruto de um esforço coletivo e de conceitos provindos de uma fonte externa.
Por um lado, talvez seja melhor para o leitor se deparar com um texto mais aprofundado, incluindo camadas suplementares de análise. Para a pessoa interessada em crítica, pode importar pouco de onde veio cada semente de interpretação. Além disso, o próprio crítico pode aprender com esses debates, abrindo-se a novas chaves de leitura para os próximos filmes que verá. Observando por este aspecto, seria melhor esperar os debates dos festivais, efetuar pesquisas na Internet e assistir a entrevistas com os diretores antes de se colocar em frente à tela branca do computador.
Por outro lado, é possível que este pensamento coletivo favoreça o consenso sobre a criação - afinal, são raríssimas as dissonâncias em debates de festivais. O confronto violento sobre o drama Vazante durante o Festival de Brasília é relembrado justamente por romper a tradição de cordialidade e aceitação que impera neste tipo de encontros entre artistas e críticos. As ideias formuladas em conjunto durante um debate seriam deste modo reproduzidas com menos variação entre os veículos, conferindo aos textos uma característica menos pessoal, ou mais "oficial", por assim dizer.
A crítica urgente, aquela escrita logo após as sessões dos festivais e mostras, costuma ser desvalorizada devido ao impressionismo, ao invés da louvável análise a posteriori, elaborada com mais calma. No entanto, esses textos têm a vantagem de espelharem uma sensação, traduzirem o impacto preciso de um filme cercado por outros filmes, dentro do contexto específico de um festival. Em outras palavras, estas respostas no calor do momento tornam-se sintomas de suas épocas, traduzem o tempo em que foram escritas. É possível o próprio autor do texto releia seu artigo cinco anos mais tarde e discorde completamente do que disse antes. Mas este aprendizado dirá algo importante, tanto para o crítico, confrontado às variações em seu ponto de vista, quanto para o leitor, diante da inegável subjetividade da prática crítica.
Considerando a crítica como gênero literário, enquanto manifestação autônoma - embora dependa, é claro, do objeto audiovisual analisado - é possível defender que ela nasça de uma interpretação única, pessoal e, portanto, menos impregnada das intenções verbalizadas de seus criadores. Isso levará a um resultado menos consensual, a possíveis análises fracas ou equivocadas. No entanto, estas são as regras do jogo arriscado da crítica, que lança suas propostas a qualquer um que deseje lê-las, seja para concordar ou discordar das mesmas. Nesse sentido, a crítica não difere tanto do próprio ato de dirigir um filme: quando se exibe o projeto nos cinemas, a interpretação não cabe mais ao criador. Agora, o filho foi colocado no mundo, e sua leitura será aquela que for feita dele, independentemente das intenções originais - vide, mais uma vez, as acusações de racismo a Vazante, que marcaram toda a trajetória comercial do filme.
Por estes motivos, devo continuar com a tentativa kamikaze, sempre meio redutora e imediatista, de escrever uma crítica antes de conversar com a equipe ou pesquisar sobre os bastidores e processos de criação do filme. Compreendo bem o argumento contrário, e reconheço que muitos colegas críticos produzem textos excelentes após uma boa pesquisa. Mas neste caso, são formas diferentes de praticar a crítica: uma como forma de investigação de fora para dentro (do filme), e a outra, de dentro para fora. Ambas são possíveis, louváveis, e prefiro pensar que se completam.