O título acima é um vergonhoso clichê, eu admito. Mas não consegui descrever com outras palavras a sensação de visitar um evento que engloba e enaltece tudo pelo que trabalhei e me dediquei na maior parte da minha vida. Foi inevitável apreciar San Diego e sua grandiosa Comic-Con sem enxergar um filme-pipoca incrível se desenrolando diante de meus olhos -- e falo isso do modo mais positivo possível, tanto abstrato como literalmente.
Em minha primeira Comic-Con como jornalista, experimentei de tudo, do melhor e do pior. Senti a emoção de conversar com um dos meus cartunistas favoritos da vida (o lendário mexicano Sergio Aragonés, aquele da revista Mad) ou com os integrantes do elenco da série de TV pela qual sou mais obcecado (Twin Peaks) e de perder a vergonha de tietar. Também experimentei a decepção de gastar uma tarde inteira em pé em uma fila, sob o sol escaldante, para escutar um voluntário sádico gritar que “infelizmente o painel está lotado, vocês precisam chegar cinco horas mais cedo se quiserem ter a chance de entrar amanhã!”. Como compreendi logo, Comic-Con é isso aí mesmo, e é por isso que é tão divertido: mesmo sabendo o que esperar, você não consegue imaginar a maneira como será surpreendido.
Também não demorou para eu entender o significado de estar ali, no meio desse borbulhante caldeirão de cultura pop e faz-de-conta. Na calorosa e acalorada San Diego, pelo menos durante a semana da Comic-Con, parece que é permitido a todo mundo ser quem quiser, como quiser, com a intensidade que tiver vontade. E uma boa parcela dos visitantes do evento leva e sente na pele o significado dessa paixão profunda e escancarada por nerdices e por tudo o que as envolve.
Isso pode significar diferentes graus de devoção e sacrifício. Há o caso dos cosplayers, inegavelmente a alma e o coração de qualquer Comic-Con, que passam calor e desconforto com fantasias e maquiagens pesadas durante horas, até dias, pelo simples prazer de ter a permissão de fazê-lo. Parece uma chance irresistível de “abandonar” o corpo físico real e experimentar, nem que por alguns momentos, a glória e a graça de ter superpoderes -- ou pelo menos imaginar que estão ao alcance das mãos. Como bem me disse Jason Schmidt, um cinquentão boa-praça que incorporava o sempre ébrio Rick de Rick and Morty pelas ruas da cidade no último sábado, a Comic-Con "é como um Halloween de adultos", com a diferença de que "qualquer um pode andar fantasiado por dias seguidos ao invés de só por uma noite".
Aquele ditado "Nem todo herói usa capa" parece ter sido criado especialmente para representar o que ocorre nas entranhas de San Diego durante essa semana. É como se muitos visitantes nem precisam vestir fantasia para viver a fantasia. No primeiro dia explorando o pavilhão principal, por acaso conheci JoAnne Buxton, uma simpática senhora octogenária vinda de Riverdale, Califórnia. Acompanhada pelo diligente marido, ela deslizava com elegância em uma cadeira motorizada pelos corredores apinhados de visitantes muito mais jovens, ostentando a confiança e serenidade de muitas Comic-Cons no currículo.
No evento deste ano, o principal objetivo de JoAnne era o mesmo de edições passadas: encontrar novos itens da marca Funko para sua vasta coleção -- ela é a orgulhosa dona de mais de 2400 miniaturas, cada uma guardada cuidadosamente na respectiva embalagem em um quarto de sua casa. “Comprei comprando as de O Mágico de Oz, depois a do Michael Jackson, daí não consegui mais parar”, disse, fazendo questão de ressaltar que a coleção também pertence a Tiffany, sua filha.
Horas mais cedo, conversei com Amos Feggins, um homem sorridente na casa dos 45 anos de Washington D.C., que havia pousado horas antes para aproveitar o fim de semana na Comic-Con. Estava animado porque havia obtido um bom lugar na fila para conseguir entrar no mítico Hall H, pavilhão onde acontecem os principais painéis. A previsão otimista era de esperar pelo menos seis horas ali sentado até receber a pulseira que concederia o tão esperado acesso, mas isso não parecia ser um problema para Amos e suas irmãs -- na verdade, tudo aquilo era um grande prazer, conforme admitiu. “No ano passado nem cheguei a entrar no Hall H. Então isso aqui está ótimo.”
Pergunto a Amos o que ele mais gosta no evento, que visitava pelo segundo ano consecutivo. A resposta é elaborada e parece ter sido ensaiada para exatamente aquele momento. “Gosto dos painéis. É interessante ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre seus filmes e séries. É claro, também é legal ver as pessoas fantasiadas. E gosto do que existe de único para vender. Quando você vai em lojas normais, sempre encontra a mesma coisa. Aqui, tudo tem um ‘toque’ a mais. Além disso, as pessoas que vem para cá têm gostos parecidos em certo grau. Todos dividem algo em comum.”
Um fã democrático e disposto, que consegue adorar algo clássico como Star Wars ao mesmo tempo em que enxerga valor em um negócio trash como Sharknado, Amos Feggins poderia sintetizar o típico frequentador da San Diego Comic-Con: alguém que compreende que os perrengues são inerentes à experiência e que abraça os desafios com a serenidade de que eventualmente será compensado pelos esforços. A capacidade de planejar com antecedência é outra virtude que se mostra obrigatória -- ainda mais se quiser repetir a dose no ano seguinte .”Vou voltar, se eu conseguir ganhar nessa loteria que é conseguir os ingressos”, ele diz. “Você precisa ficar lá de madrugada com três computadores ligados ao mesmo tempo para conseguir… Não é tão simples como parece. As pessoas que estão aqui trabalharam duro.”
Diversão dá trabalho, mas vale cada minuto. Valeu, Comic-Con, nos vemos em breve. E em outubro já tem a Comic-Con de Nova York.Que venham muitas mais.
Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema e consome cultura pop desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks. Como jornalista, editou revistas de entretenimento como Rolling Stone, Herói, EGM e Nintendo World.