Fardado como um policial militar do Rio de Janeiro em uma tarde amena do inverno carioca, Marcos Palmeira faz sua voz ecoar para perturbar a calmaria da comunidade Tavares Bastos, localizada nos morros do Catete, célebre bairro da zona sul da capital fluminense. Ele grita, xinga e defende seus colegas do ataque midiático: este é o Major Douglas, oficial determinado, líder nato e protagonista de Intervenção, drama de ação de Caio Cobra (Virando a Mesa) que analisa de perto o atual e caótico contexto social da Cidade Maravilhosa - marcado por mortes de policiais e da população, corrupção estatal e violência geral.
Mas apesar do DNA de filme de ação, o diretor, o elenco, os produtores e os roteiristas do longa-metragem fizeram questão de frisar - em coletiva à imprensa realizada após um dos últimos dias de gravação da película - que Intervenção busca o lado humano acima de tudo. Narrando a história da policial Larissa (Bianca Comparato, que interpreta o papel que originalmente seria da cantora Anitta), Intervenção explora um dos mais alardeados projetos de Segurança Pública da história recente do Rio de Janeiro, bem como as consequências sociais acarretadas pelo declínio das UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora.
"Quando li o roteiro do Rodrigo Pimentel [autor de "Elite da Tropa" (ed. Objetiva), não-ficção que deu origem a Tropa de Elite e Tropa de Elite 2], li de uma tacada só e me apaixonei de cara porque o filme não toma nenhuma frente, não levanta nenhuma bandeira, não é panfletário e nem defende um lado ou outro. Ele expõe uma ferida que está aberta”, declarou Palmeira sobre a trama de Intervenção - que apesar de ser situada em uma comunidade fictícia do Rio de Janeiro, o Morro da Laje, aborda a situação vivenciada atualmente na cidade-berço do Samba e da Bossa Nova por um viés humanista:
"É um filme sobre o momento atual do Rio de Janeiro. 9 mil jovens entre 20 e 27 anos acreditaram nas UPPs - como eu também acreditei durante um bom tempo, como boa parte dos cariocas também acreditou -, prestaram concurso para entrar na Polícia e viraram vítimas do próprio equívoco de um projeto-gambiarra [...] Nosso filme fala de jovens que morrem nas favelas da cidade com maior número de mortes de policiais no mundo. Algumas vezes estes jovens são algozes da violência, mas muitas vezes também são vítimas da violência”, atestou Pimentel, ex-consultor de Segurança Pública da Rede Globo.
Ex-capitão da Polícia Militar e ex-integrante do BOPE (Batalhão de Operações Especiais), Pimentel escreveu o script ao lado do colega Gustavo de Almeida, jornalista que trabalhou como assessor de imprensa da PM do Rio de Janeiro durante cinco anos. “Nesse processo de produção, eu e o Rodrigo obviamente nos inspiramos em várias obras, fomos buscar exemplos de narrativas... e um filme que chamou muito a nossa atenção foi Dunkirk, filme do Christopher Nolan em que os soldados ingleses são cercados contra a praia de Dunquerque e não há mais nada que eles possam fazer, estão apenas esperando o resgate [...] A gente se inspirou nisso pelo seguinte: nossas UPPs são como a praia de Dunquerque; a diferença é que não vem ninguém com barco para resgatar ninguém", ressaltou Almeida.
Para além do fato de que os policiais das UPPs tornaram-se alvos fáceis nas comunidades retomadas pelos traficantes de 2008, época da inauguração do projeto, para cá, os roteiristas também reforçam que outro sintoma da falência do modelo de policiamento criado pelos políticos do MDB - partido que governa o estado do Rio de Janeiro desde 2007 - é o fato de que muitos policiais fazem as vezes do Estado, atuando também como agentes de lazer, cultura e educação nas comunidades e favelas. De acordo com Pimental, inúmeros oficiais das UPPs dão aulas de reforço de português para crianças, levam grupos de jovens para assistirem peças de teatro e ensinam outras atividades, como tocar instrumentos musicais ou artes marciais. Esta complexa e simbólica realidade, aliás, ajudou Bianca Comparato a compor sua personagem:
“O que me interessou muito foi a visão feminina da polícia. As UPPs abriram espaço para as mulheres com a ideia de criar uma polícia mais humana, mais em contato com a comunidade. E não é à toa que a heroína do filme é uma mulher porque isso traz uma visão diferente. Não sei se melhor ou pior, mas diferente. Historicamente, é um ponto de vista que não estamos acostumados a ver. Isso me interessou muito. De observar pelo ponto de vista da mulher essa polícia que tinha o objetivo de ser mais próxima da comunidade, mais humana, mas em uma cidade em guerra. É uma polícia que pacifica com um fuzil”, explicou a atriz, que conversou com policiais das UPPs para entender seus contextos.
A protagonista não foi a única a receber apoio de profissionais da lei da vida real durante o processo de preparação e pré-produção de Intervenção. Enquanto o resto do elenco também mergulhou nas complexidades do que é ser um policial no Rio de Janeiro através do contato com policiais, outros agentes, tanto na ativa quanto reformados, fizeram parte das gravações para ajudar Cobra a conferir maior veracidade às sequências - inclusive nos momentos mais calmos e dramáticos, como ressaltou o cineasta. Aliás, se há um verbo que parece ter movido a produção de Intervenção, este é "humanizar", vocábulo que centraliza um dos embates fundamentais do longa: aquele entre os policiais e a mídia.
"Intervenção critica, sim, colegas da imprensa que não conseguem enxergar o lado humano de um policial que acordou cedo, que está com o salário atrasado, que não recebeu colete à prova de balas, que no último mês já enterrou seis, sete colegas. A Bianca conversou com uma policial e ela disse: 'Já enterrei 11 colegas'. O que pensa um ser humano que já enterrou 11 colegas?", disse Pimentel. Por sua vez, o coprodutor do longa, o italiano Angelo Salvetti, completou: "Essa coisa de que morre mais morador ou mais policial... Não deveria morrer ninguém. Não é questão de contar quem morre mais ou quem morre menos. Não deve morrer ninguém [...] Hoje, em relação à imprensa, existe uma imprensa sensacionalista que, no fim das contas, não é imprensa. É uma parcela que se aproveita desse bipolarismo para criar notícias que acabam gerando venda, cliques, likes, o que quer que seja".
E em um contexto especialmente polarizado politicamente como o vivenciado atualmente no Brasil, Intervenção, de acordo com Comparato, busca fugir do partidarismo para transformar o espectador em uma testemunha direta e evitar ideias unilaterais: "Em uma hora de sobrevivência real ou em uma hora que você está desempregado e não tem comida, pouco importa qual é a sua crença política. A gente quis focar nestes personagens, que estão em situações limite. A política estará no olho de quem vai ver o filme [...] Acho que o que eu mais desejo é que esse filme gere discussão. Que não gere polarização, não gere mais ódio, mas reflexão [...] Esse é um assunto que precisa da nossa atenção. Estou aqui como atriz e cidadã”.
Coestrelado por Rainer Cadete, Zezé Motta, Dandara Mariana, Vitor Thiré e Babu Santana, Intervenção estreia no dia 15 de novembro.