Desde a última quinta-feira, os cinemas brasileiros exibem um dos destaques do Festival Varilux de Cinema Francês 2018: Primavera em Casablanca, drama selecionado nos prestigiosos festivais de Toronto e Locarno.
A trama gira em torno de cinco personagens que vivem na cidade marroquina em plena revolução árabe, quando os cidadãos vão às ruas para protestar contra o governo. O polêmico filme aborda as questões do aborto, do divórcio, da comunidade judaica, do papel dos artistas, da invasão da cultura ocidental...
Para conversar sobre este projeto ambicioso, o diretor Nabil Ayouch e a atriz Maryam Touzani estiveram no Brasil e responderam às perguntas do AdoroCinema. Eles também são os roteiristas desta história:
Seu filme anterior, Muito Amadas, foi muito bem recebido pela crítica, mas foi censurado em seu país. Esta primeira experiência ajudou ou dificultou a produção de Primavera em Casablanca?
Nabil Ayouch: Aquele filme me ajudou, porque foi um testemunho do meu desejo de fazer cinema. Principalmente por causa do Marrocos, que é o país onde eu e Maryam vivemos agora, e também por causa da minha capacidade de preservar intacta a minha liberdade de expressão sobre os temas que são essenciais e que fazem parte de mim. Sobretudo a liberdade individual como direito fundamental.
Queria testar os limites da minha liberdade de expressão. Eu estava no meu lugar ou não naquela região do mundo para falar sobre os temas que são essenciais para mim e que me movem há tanto tempo? E me dei conta com Primavera em Casablanca que sim. Não tinha vontade de responder ao ódio com o ódio. Queria explorar isso, o ódio enraizado em nossa sociedade, como um antropólogo.
Você exibiu o filme em diversos locais do Marrocos. Quais foram as reações do público local?
Nabil Ayouch: Foi ótimo poder ver um público majoritariamente jovem assistindo ao filme, que foi exibido em todas as partes do país. E também ver, até certo ponto, as minorias sexuais e religiosas femininas, acostumadas a se calarem por causa das regras sociais, se pronunciando sobre o filme por se identificarem com a personagem. Isso foi muito, muito bonito.
Maryam Touzani: Os debates foram muito ricos. Duravam uma hora e meia, duas horas, não acabavam nunca. Precisávamos continuar as conversas fora da sala. Foi comovente ver como as pessoas se expressavam e como o filme traduziu em palavras os sentimentos e as questões internas delas.
Mesmo abordando questões locais muito específicas, acredita que Primavera em Casablanca possa ser compreendido da mesma forma no resto do mundo - inclusive no Brasil, um país de maioria cristã?
Nabil Ayouch: Sim, com certeza. De fato, já exibimos o filme duas vezes no Brasil e o público se sentiu impressionantemente ligado à temática do filme. Por causa do machismo muito forte, diversas mulheres vieram conversar com Maryam. Durante o debate nós ouvimos essas espectadoras dizerem que os problemas da personagem de Maryam são os mesmos que elas enfrentam diariamente.
No que diz respeito às problemáticas ligadas à diversidade cultural, à questão dos povos nativos, nós falamos dos berberes no Marrocos, mas a situação é igual no Egito, com as pirâmides e a diversidade cultural que queremos apagar. Nós verdadeiramente sentimos que Primavera em Casablanca encontrou um eco incrível no Brasil. As salas estavam lotadas, os debates também, e as pessoas tinham inúmeras perguntas para fazer.
Maryam, você não escreveu o papel de Salima para você mesma no início. Como se apropriou dessa personagem?
Maryam Touzani: Na verdade, eu escrevi a personagem pensando em uma amiga, e jamais imaginei que a interpretaria. Então, houve um momento em que Nabil me pediu para participar de um ensaio e eu aceitei, mas também tive medo porque nunca tinha atuado antes. Eu tinha medo de não estar à altura da personagem. Ao mesmo tempo, no meu íntimo, havia um desejo muito, muito forte de dar voz a esta mulher que eu também havia escrito e que se parecia muito comigo. Então, havia algo natural nessa transição. Era como se tivesse começado tudo junto, foi apenas um prolongamento de uma vontade interna. Entrei rapidamente na pele dela porque, no fundo, ela estava no meu interior. Nabil percebeu isso muito antes de mim.
Nabil Ayouch: Maryam foi uma fonte de inspiração muito forte para a criação dessa personagem, desde o princípio. Foi verdadeiramente essa observação, minha e de Maryam, sobre a sociedade e sobre a luta das mulheres que nos deu o desejo de falar sobre Salima e de escrevê-la dessa maneira.
As cenas com Salima são as mais tensas, porque ela suscita desejo e ódio ao mesmo tempo, enquanto enfrenta a moral, o governo, o marido. Ela é uma exceção ou existem cada vez mais mulheres como ela no Marrocos?
Nabil Ayouch: Infelizmente, Salima faz parte de uma minoria. No que diz respeito à questão da mulher em particular, nós regredimos. Nos últimos 20 anos, o Marrocos regrediu. Aqui no Brasil, vejo que a situação é parecida. Ao mesmo tempo, tenho confiança por saber que as histórias das grandes revoluções são escritas pelas minorias. As jovens dos bairros mais pobres do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Casablanca ou de Marraquexe se sentem oprimidas, e vivem essa opressão de uma forma ou de outra, seja através da família, da religião, da sociedade, de seus casamentos. Elas precisam da figura de mulher forte, como Salima no filme, para poderem se identificar. Acredito que Salima dê coragem para muitas mulheres. No Marrocos, as leis sobre a violência contra a mulher têm mudado aos poucos. É preciso ter modelos para manter a luta.
Maryam Touzani: Para manter a luta e também para dizer que uma mudança é possível, porque quando não conseguimos algo, não atingimos o que é possível, nós desistimos. Então as mudanças nunca começam. Quando temos exemplos de mulheres que conseguem, isso nos encoraja a lutar também. É como Yto (Nesha Tebbai) para Salima. Se ela nunca conhecesse Yto, essa mulher idosa que faz com que Salima encontre a coragem para afrontar seu marido e a sociedade, é possível que ela também não entrasse na luta. Existem muitas mulheres que lutam no Marrocos, cada uma à sua maneira, mas há algo que nos une, que nos torna forte juntas e que nos possibilita mudar o curso do nosso destino dentro da sociedade.
Depois da sessão de imprensa, muitos críticos se dividiram entre considerar o filme otimista ou pessimista. Como vê este embate?
Nabil Ayouch: Não penso no filme nestes termos. Pessoalmente, diria que é extremamente otimista, mas que também é extremamente realista. Sobretudo, desejo que o filme fale sobre um contexto do mundo, ao mesmo tempo em que seja a projeção de uma nova ordem. E se uma nova ordem precisa passar pelo caos, por quê não? Creio que quando uma sociedade chega ao seu limite, seja lá qual for a forma deste limite - em termos de modelo de sociedade, por exemplo - , isso significa que parte desta sociedade já não consegue mais existir. Temos que ser capazes de nos reinventar.
As artes têm um papel privilegiado nessa história: a dança, o canto, a poesia...
Nabil Ayouch: As artes e a cultura podem mudar o mundo, porque a poesia não falha em lugar nenhum. Cada vez mais percebemos que os novos líderes de certos países, onde os combates pelos direitos civis das minorias aconteceram, são líderes ruins. Veja Trump, por exemplo. Depois de oito anos de Obama, regredimos 30 anos. São homens que podem, atualmente, conclamar sem esforço ou sem vergonha que querem matar outros homens só porque estes são de etnias diferentes. E estamos em 2018! Veja o que está acontecendo na Europa, na Itália, na Áustria, na Hungria… Esse populismo, essa demagogia está crescendo. Nós percebemos, enfim, que as pessoas responsáveis por criar as leis estão, aos poucos, nos trazendo mais desespero e infelicidade.
Em meio a tudo isso, há a arte e a cultura. Quando, paralelamente, as novas mídias como a Internet se tornam mais rápidas, mais acessíveis ao redor do mundo, nós compreendemos que a cultura e as artes podem viajar ainda mais facilmente que antes. Assim descobrimos que, no fundo, temos muitas coisas para contar uns aos outros. Mesmo as nossas diferenças nos enriquecem através da arte e da cultura. Aprendi, através do cinema, a ver o mundo. Hoje vejo o efeito que o centro cultural no qual cresci, no subúrbio de Paris, produziu em mim. Então eu faço a mesma coisa: crio centros culturais nos subúrbios do Marrocos. Eles podem mudar o destino de uma criança. Creio fortemente na arte e na cultura.