Ingmar Bergman foi para o drama existencial o que Alfred Hitchcock foi para o thriller psicológico, o que Steven Spielberg é para o cinema de entretenimento, o que Martin Scorsese e Francis Ford Coppola foram para os filmes de máfia: uma referência indelével de influência universal cujo legado será recontado, com justiça, com todos os superlativos que lhes são dignos.
Investigador inquieto das angústias da alma humana, o realizador sueco, nascido há um século, no dia 14 de julho de 1918, foi um nome fundamental no cinema europeu não-anglófono da metade do século XX em diante. Junto com figuras como Federico Fellini, François Truffaut e, posteriormente, Andrei Tarkovski — três dos diretores favoritos do realizador nórdico —, Bergman foi responsável por produzir obras contundentes em um momento em que o cinema começava a reivindicar seu lugar como uma forma de arte "séria", com um valor que vai além do que é mensurado nas bilheterias.
"Um filme tem sonho, tem música", escreveu Bergman na autobiografia Lanterna Mágica (1987). "Nenhuma outra forma de arte vai além da consciência ordinária como o cinema, que vai direto nas nossas emoções, fundo no crepúsculo da alma." Famoso pelas tomadas de rostos em primeiro plano que serviam para tatear os medos e inseguranças que exalavam dos poros de seus protagonistas, o cineasta sueco foi um farol, um expoente de um cinema junguiano interessado no inconsciente, em suas pulsões e memórias rarefeitas, entre a realidade e o delírio, entre o onírico e o pesadelo — como visto no primoroso Morangos Silvestres (1957).
Bergman nasceu em Uppsala, um dos principais centros religiosos da Suécia no início do século passado. O diretor foi o filho do meio de Erik Bergman, um pastor luterano que, segundo o cineasta, era uma pessoa amável e simpática na igreja e rígida em casa, e Karin Åkerblom, uma enfermeira. Da infância presenciando cerimônias cristãs, o tédio estimulou a criatividade e imaginação do diretor, que prestava mais atenção na maneira como a luz natural iluminava a catedral e nas figuras de profetas, demônios, anjos e santos do que nos sermões.
"Um dos sentimentos mais fortes que eu me lembro da minha infância é, precisamente, o sentimento de ser humilhado, de ser atingido por palavras atos e situações", já afirmou o realizador em entrevistas ao mencionar que os castigos eram constantes durante sua infância, fase da vida que seria revisitada em filmes como Fanny e Alexander (1982) — obra autobiográfica sobre a solidão pueril que Bergman experimentou ao lado de sua irmã Margareta — e Sunday's Children (1992) — roteirizado por Bergman e dirigido por seu filho, Daniel. A questão da humilhação, tema pelo qual o cineasta tinha um interesse quase forense, foi abordada em diversos de seus filmes. "A crueldade sem motivos é algo que nunca deixa de me fascinar e eu gostaria muito de entender os motivos por trás disso", disse o diretor em entrevista publicada no livro Bergman on Bergman (1970).
Foi na infância que floresceu o interesse do sueco pela sétima arte. Sua avó a levava para o cinema sem que o clérigo pai do futuro diretor soubesse. Também em Bergman on Bergman (1970), o diretor relembra uma memória fundamental de sua formação que mostra a extensão de seu interesse por imagens em movimento. Com "nove ou dez anos", o diretor ganhou um ursinho de pelúcia de Natal enquanto seu irmão mais velho, Dag, ganhou um cinematógrafo, um pequeno projetor. "Foi uma das maiores decepções da minha vida", recobrou Bergman, que logo deu um jeito de ficar com o que queria: trocou metade de seus soldadinhos de brinquedo pelo objeto que faria sua vida mudar.
Bergman estudou arte e literatura na Stockholm University College, mas nunca se formou. Foi no tempo como universitário que o sueco se tornou um "verdadeiro viciado em filmes" e começou a desenvolver de forma profissional suas aspirações artísticas no cinema e teatro (até o final de sua vida, Bergman dirgiu mais de 170 peças), atuando como dramaturgo e roteirista.
Em 1944, escreveu o roteiro de Torment, filme lançado no mesmo ano e dirigido por Alf Sjöberg. Estreou como diretor em Crise (1946), com base em um roteiro também de sua autoria, uma adaptação de uma peça escrita por Leck Fischer. Já em seu primeiro trabalho, menos lembrado do que seus sucessos posteriores, Bergman já dava indícios de como iria tocar sua carreira como realizador. O cineasta ajudou a consolidar o papel do autor no cinema. Dos 45 longas-metragens que dirigiu, apenas seis não são baseados em um roteiro que assinou. Além disso, o filme é estrelado por uma personagem feminina e sua simpatia por histórias protagonizadas por mulheres foi uma marca de sua trajetória criativa, como epitomizado em produções fundamentais como Quando Duas Mulheres Pecam (1966), Gritos e Sussurros (1972) e Sonata de Outono (1978).
A primeira vez que o diretor sueco se impôs no cenário internacional foi com Sorriso de uma Noite de Amor (1955), seu 16º filme, uma rara comédia que venceu o prêmio de "melhor humor poético" no Festival de Cannes e concorreu à Palma de Ouro. Embora o impacto cultural de sua carreira não precise ser medido pelos louros de premiações de cinema, Bergman foi premiado em Cannes outras seis vezes, incluindo uma vitória do prêmio especial do júri por O Sétimo Selo (1957), a Palma das Palmas em 1997 e um prêmio especial pelo conjunto de sua carreira em 1998. No Festival de Berlim, venceu o Urso de Ouro por Morangos Silvestres (1957). No Oscar, foi premiado com a estatueta de melhor filme estrangeiro por A Fonte da Donzela (1959), Através de um Espelho (1961) e Fanny e Alexander (1982).
Como diretor, o realizador nórdico foi capaz de explorar a potência imagética que só o cinema tem com um tato refinado. Ao abordar a dualidade entre vida e morte em O Sétimo Selo (1957), o cineasta, mestre do uso de contrastes de luz e sombra, criou um dos planos mais icônicos do cinema ao colocar o desiludido cruzado vivido por Max von Sydow para jogar xadrez com a personificação da Morte (Bengt Ekerot). Talvez sua maior característica como cineasta seja o uso dos close-ups precisos, humanizantes, desnudados. O realizador, em comunhão com seus atores, também cúmplices e co-criadores, explora o rosto humano para deixar que as feições falem por si, deixar que um olhar seja mais eloquente que uma linha de roteiro. Foi assim na lacerante fusão dos rostos de Ingrid Bergman e Liv Ullmann em Sonata de Outono (1978) com enquadramento que foi um precioso serviço à dramaturgia de uma obra sobre a falência do afeto na relação entre mãe e filha. A câmera estática diante de uma face também propõe uma espécie de espelho com o espectador, o que explica o fascínio e o desconforto diante dos olhares de Bibi Andersson e Liv Ullmann em Persona (título original de Quando Duas Mulheres Pecam). Também é digno de nota o trabalho maestral que o cineasta teve como diretor de atores, sendo até hoje considerado um dos cineastas que melhor exerceu essa função com seus elencos.
Parte de sua posição como um dos grandes autores do cinema em todos os tempos, além da recorrência de temas e propostas estéticas, está no fato do realizador contar com um time de intérpretes de confiança com quem trabalhou em múltiplos projetos. As presenças de Ullmann (em 10 filmes), Andersson (em 13 filmes), von Sydow (em 13 filmes), Gunnar Björnstrand (em 23 filmes), Erland Josephson (em 14 filmes) e Ingrid Thulin (em 10 filmes) concedem identidade, coesão e profundidade cênica à obra fílmica do diretor nórdico.
"O close-up em um ator, quando corretamente iluminado, dirigido e atuado, continua sendo o auge da cinematografia", já afirmou Bergman. "Aquele contato estranho e misterioso que você pode de repente experimentar com uma outra alma através do olhar de um ator. Um pensamento súbito, um sangue que escorre pelo rosto, as narinas trêmulas, a pele repentinamente brilhante ou o silêncio mudo. Esses para mim são alguns dos momentos mais fascinantes e incríveis que você irá experimentar." Geralmente associados à linguagem visual da televisão, os close-ups ganham uma profundidade penetrante no cinema de bergmanesco, onde toda a atmosfera aponta para um instante de fascínio diante da vulnerabilidade de seus protagonistas propostos por um realizador muito interessado nos meandros da condição humana.
São essas reações humanas que Bergman explorou em seus filmes que se debruçaram em temas como a incomunicabilidade entre pessoas que se amam (ou deveriam se amar), a inevitabilidade da morte, a dúvida, a vergonha, as ansiedades sexuais, o incômodo diante do silêncio de Deus, a fragilidade dos laços interpessoais a relação entre sonho e realidade.
O diretor acumulou admiradores entre seus contemporâneos e seu legado vive na influência de cineastas de gerações posteriores. Tarkovsky tinha Bergman e Robert Bresson como diretores favoritos. "Eu não sei como alguém poderia não ser influenciado por Bergman", já disse Scorsese. Stanley Kubrick chegou a dizer que o colega de profissão era um dos poucos cineastas que não era um "oportunista artístico". Para Krzysztof Kieślowski, Bergman tem tanto a dizer sobre a condição humana quanto Dostoyevsky ou Camus. Nomes mais contemporâneos como Pedro Almodóvar, Asghar Farhadi, François Ozon, Park Chan-wook, Lars von Trier e Guillermo del Toro também consideram o diretor escandinavo uma referência em seus trabalhos.
Mestre no uso de simbologias e afeito a tratados existenciais banhados por uma angústia austera herdada de seu contexto nórdico e protestante, seria uma armadilha dizer que Bergman faz filmes "meramente intelectuais". Antes de mais nada, o cinema do realizador sueco é uma forma de arte que estimula o espectador a sair da zona de conforto justamente por explorar temas que acompanham a humanidade desde os primórdios não só da Filosofia, mas do pensamento em si. Seus filmes tocam em angústias que serão sempre presentes na vida cotidiana de qualquer pessoa, como a busca por sentido na existência e experiência humana e o peso lancinante da mortalidade.
Antes de tocar no nível intelectual, a cinematografia do diretor é feita de sensações. Um bom exemplo são as sequências oníricas de Morangos Silvestres (1957), um drama existencial estrelado por um brilhante Victor Sjöström no papel de um médico arrogante idoso que está prestes a ser homenageado pelo jubileu de ouro de sua carreira. Rumo à sua alma mater, o protagonista se vê imerso em delírios vívidos sobre seu passado, das paixões não correspondidas às traições que sofreu. Durante a viagem ao subconsciente do personagem, o público é confrontado com um poderio imagético inesquecível, como a carruagem guiada por uma figura misteriosa, o homem de feições bizarras e o relógio (objeto presente em muitos outros trabalhos do diretor) sem ponteiros. Para Bergman, o cinema é uma ponte para o subconsciente. No conjunto de sua obra, o diretor criou uma forma de arte que, mesmo densa em seus debates, que não precisa de maiores racionalizações para ser completamente experimentada. Nas palavras do próprio diretor: "Eu quero que o público sinta os meus filmes. Isso é muito mais importante para mim do que compreendê-los".