Maria é um nome que traz sorte, disse a parteira de Maria Gladys à mãe da atriz. E agora, 78 anos após o nascimento da intérprete, dançarina e musa do Cinema Marginal, o tempo fez questão de provar que a crença estava mais do que correta: a boa fortuna marcou a carreira da principal homenageada do CineOP 2018, a mostra de cinema de Ouro Preto. Em entrevista coletiva, um dia após a noite de abertura do evento, Gladys se reuniu com os jornalistas para relembrar sua extensa filmografia, uma obra plural que se confunde com sua trajetória pessoal e com a história do cinema nacional.
Saudosa e emocionada - mas sempre bem-humorada, afiada e irônica - a irreverente Gladys riu, chorou e relembrou, acima de tudo, parcerias marcantes de sua carreira, baseada em performances viscerais, versáteis e sempre surpreendentes: "É um sentimento de gratidão", disse a atriz ao explicar as emoções provocadas pelo tributo outorgado pelo CineOP 2018 ao conjunto de sua obra. "Esse é o sentimento. Alegria e graditão. [...] A homenagem aqui em Ouro Preto foi muito legal, muito boa. Adoro essa cidade, filmei aqui [...] É um presente, um presente. Já me emocionei, já chorei, já bebi: é muito lindo esse momento pra mim", arrematou Gladys.
Dançarina de rock, namorada de Roberto Carlos, exilada política: todos estes são "conceitos" que se aplicam à persona da inusitada atriz; por outro lado, é definitivamente sua profissão o elemento que melhor pode explicar a essência desta intérprete que começou a ganhar o mundo no clássico Os Fuzis, de Ruy Guerra. Não é à toa que a também atriz e diretora Norma Bengell, amiga pessoal de Gladys, tenha nomeado seu documentário de 10 minutos sobre a homenageada do CineOP 2018 da seguinte forma como Maria Gladys, Uma Atriz Brasileira - é exatamente isto que ela é, apesar de todos os contratempos:
"Enxergo assim: valeu. Valeu a pena", contou a musa do Cinema Marginal de Júlio Bressane, Neville D'Almeida e Rogério Sganzerla, emocionando-se ao lembrar dos obstáculos superados. "Nem sei se acreditava que ia valer tanto. Minha mãe tinha que ver isso. Não sabia que isso aconteceria, você não tem certeza [...] Essa coisa de ser atriz não é só talento: é sorte, perseverança, vocação. É um caminho difícil de seguir", arrematou Gladys.
Aliás, a atriz demorou muito a conseguir compreender e aceitar suas raízes: "Eu não queria encarar esse tipo, não queria ser essa mulher brasileira. Nos anos 1960, com Nouvelle Vague e coisa e tal, referencial europeu, todo mundo era influenciado [...] Falei assim para o Dib Lutfi [diretor de fotografia que trabalhou com Gladys em Edu, Coração de Ouro], ‘Dib, quero ficar que nem a Anna Karina’. Queria parecer a mulher do Jean-Luc Godard, uma dinamarquesa, que tem uma testa enorme, grandes olhos, tudo oposto a mim. Essa coisa de ser colonizada pelo cinema americano, pelo cinema europeu, de não querer encarar que você é brasileira, morena, que tem cabelo crespo... Na época, quando eu comecei a fazer teatro, eu alisava o cabelo, queria ter cabelo liso [...] Me negava ser uma coisa que era impossível não ser: brasileira, atriz brasileira. E ser atriz brasileira, como qualquer artista brasileiro, é sofrer muito. É como dizia o Tom Jobim, o Brasil é para profissionais. O Brasil é foda, é duríssimo. Para tudo. Para todo mundo".
A relação de Gladys com seu país, de fato, nunca foi das mais fáceis. Quando se exilou em Londres, após o recrudescimento da ditadura, "cortesia" da instituição do AI-5, a atriz deparou-se novamente com a tensão entre sua nacionalidade e as maravilhas apresentadas pela capital do Reino Unido, local pelo qual se apaixonou: "Em Londres, nunca senti saudade do Brasil. Nenhuma saudade do Brasil. Além de ter aquela terrível ditadura, não tinha saudade do Brasil, um país maleducado, chato [...] Em Londres, aprendi tudo de bom. Falar mais baixo, atravessar direito no sinal, poder fumar maconha dentro do táxi. Ser livre [...] Ninguém vai preso por causa de um cigarro. Legalização já!", finalizou Gladys, com um protesto.
No entanto, de uma forma ou de outra e independente da vontade da atriz, é ultimamente impossível separá-la de nossa cinematografia. Afinal, ela esteve presente nos grandes momentos dos anos 1960 e 1970, enfrentou o ocaso dos anos 1980 e 1990 e ressurgiu, a partir de uma persona mais popular, cômica e acessível, quando a era da Retomada deu lugar às "globochanchadas", nestas duas décadas mais recentes. Sua profunda expertise no assunto, aliás, a transforma em uma verdadeira autoridade no quesito cinema nacional, uma mulher que viveu de e para a sétima arte - e que sabe como ninguém elencar a corrente que herdou o melhor do Cinema Novo e do Cinema Marginal:
"Atualmente, filmei com Cláudio Assis, fiz o cinema pernambucano, A Erva do Rato. Ele é um gênio, é uma paixão [...] Filmei com o Irandhir Santos. Ele é um ator... Na filmagem, você não encontra ele conversando. Ele se tranca no quarto para estudar, é tipo ator europeu que tem que engordar 20 quilos. Ele é desse tipo [...] Esse é o cinema pernambucano. Acho que, hoje em dia, o cinema pernambucano é parecido com o cinema baiano dos tempos de Glauber Rocha. E do carioca, de Nelson Pereira dos Santos", elogiou Gladys.
Falante e sempre grata, a atriz só encerrou suas respostas porque o tempo chegou ao fim e o cansaço bateu à porta. Caso contrário, ela certamente teria continuado a elogiar seus colegas e diretores - nomes consagrados como Marília Pêra, Miguel Falabella, Daniel Filho, Helena Ignez, Domingos Oliveira, entre inúmeros outros - e a mostrar porque é uma das maiores e mais importantes guardiãs da memória do cinema nacional.