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    Festival Varilux de Cinema Francês 2018: O espectador é o corpo e a alma da Realidade Virtual, explica Fouzi Louahem (Entrevista Exclusiva)

    Conversamos com o jornalista, cineasta e roteirista especialista na nova mídia durante a mostra de cinema francês.

    Como toda tecnologia ou meio artístico em processo de gestação, a Realidade Virtual desperta iguais medidas de curiosidade e temor. Para os entusiastas, a mídia do momento oferece um cenário de melhorias para o futuro da humanidade como um todo - que poderá controlar e dominar o potencial semi-fantástico e quase surreal da VR (do inglês virtual reality). Para os céticos, no entanto, a tecnologia é somente mais uma ferramenta - ao lado das redes sociais - para separar ainda mais os já individualizados cidadãos modernos, confinando-os a um perigoso mundo de realidades fabricadas virtualmente.

    Frequentemente, no entanto, esquecemos do elemento humano da equação. Verdadeiramente inserido, pela primeira vez em toda a história, no interior de uma narrativa, o homo sapiens se depara com um ambiente inteiramente inédito na Realidade Virtual, um espaço digital que tem suas próprias regras, limites fisiológicos e questões éticas. Assim, para aprofundar o debate e recentralizar a discussão ao redor da humanidade, conversamos com o jornalista, diretor e roteirista de obras em VR Fouzi Louahem - que esteve no Brasil para ministrar sua masterclass sobre Realidade Virtual, a convite do Festival Varilux 2018.

    Festival Varilux 2018

    CORPO E ALMA

    Nas palavras de Fouzi, o "eu sou" é o principal sintagma da Realidade Virtual: de fato, é determinante que o espectador - ou experimentador, no caso da VR - se torne uma espécie de espírito, ocasionalmente um observador distanciado da narrativa, porém sempre imerso, para que as experiências funcionem; é preciso que o espectador se entregue de corpo e alma.

    Este, aliás, é o primeiro dilema dos diretores e roteiristas de VR: onde colocar a câmera, uma vez que sua posição muda fundamentalmente o papel do experimentador na obra? A partir do momento em que o dispositivo de filmagem é integrado à narrativa, desaparecendo dentro dela, sua presença incorpórea precisa ser justificada; por isso, na maioria dos casos, o experimentador ou ganha a oportunidade de ser como um fantasma que se limita a acompanhar os eventos da trama ou torna-se personagem principal das obras de Realidade Virtual, ainda que nem sempre possa interagir de volta com os outros personagens:

    "Esta é a única forma de arte em que o espectador não está no exterior da forma de arte. Quando observamos uma escultura, somos exteriores a ela. Quando vemos um quadro, estamos no exterior. Quando vemos um filme, o vemos do exterior. Nós podemos nos distanciar dessa obra de arte ou aceitá-la, mas sempre estamos no exterior. Na Realidade Virtual, estamos no interior. O único outro meio que te aproxima tanto assim é o happening teatral, que se dá em um lugar onde as pessoas parecem estar lá por acaso, mas na verdade são atores. Isso é o mais próximo que podemos chegar. Mas, de verdade, o espectador vê as coisas se desenrolaram ao seu redor na Realidade Virtual e é por isso que digo 'corpo e alma'. Em um momento específico, ele vai esquecer seu corpo, o que quer dizer que as ações de seu corpo no exterior da VR não causam dissonâncias na experiência. Há um dispositivo entre os dois", explica Fouzi.

    Ainda, essa relação de "corpo e alma" que precisa ser estabelecida entre o experimentador e o filme - a base da "máquina de empatia", como o realizador Chris Milk chama a VR por causa da extrema proximidade criada entre o público e a obra - muda por completo a maneira como os produtores, diretores e roteiristas devem pensar a construção audiovisual. Afinal, diferentemente de todas as outras mídias, a Realidade Virtual é muito mais baseada no sentimento do que na tecnologia, como arremata Fouzi:

    "Caso o espectador aceite este contrato, como aceitamos no cinema e nos deixamos imergir em uma narrativa, o espectador vai, sobretudo, sentir muito, muito fortemente aquilo que o rodeia na Realidade Virtual [...] Não julgamos os enquadramentos, a montagem ou os acontecimentos. Julgamos o sentimento. Se o espectador se sentiu emocionado, confuso, aterrorizado, intrigado... Julgamos o sentir [...] Não há filtro entre o filme e o espectador. Não há filtro de montagem, essencialmente. E em seguida há a escala. Vemos as pessoas na Realidade Virtual em suas dimensões verdadeiras, não há deformação. Assim, quando você olha alguém nos olhos, você olha essa pessoa em seus olhos. Não há quebra de quarta parede, é algo cotidiano na Realidade Virtual. Quebrar a quarta parede na Realidade Virtual é colocar o espectador dentro da cena. É dizer que "você está aqui comigo". Isso é muito interessante".

    CONTROLE E EXPECTATIVA

    Falar sobre sentimentos e emoções ao mesmo tempo em que é impossível descartar a necessidade de um roteiro de produção, com cenas e diálogos demarcados, soa quase como um contrassenso: como é possível concatenar a abstração do campo emocional à concretude do planejamento para a produção de uma obra em VR?

    "É verdade que a interação é, ao mesmo tempo, genial e insuportável, dependendo do interesse. Existem pessoas que não suportam a ideia de que o espectador possa fazer escolhas. A interação, seja na VR, seja nos documentários interativos, pode nos transportar [...] É por isso que hoje em dia o formato mais democrático do mundo é o vídeo. Você aperta alguns botões, interage um pouco e você um filme até o final. Na interação da VR, você precisa ser capaz de abandonar o controle - mas a questão é até que ponto. Mas, no mínimo, diria que não é nada mal quando um espectador está imerso em um ambiente. Para não deixarmos os espectadores no escuro, criamos ações nos 180 graus que estão atrás do espectador. Sabemos que é um hábito do espectador assistir ao filme diante de si. Por isso, nós fazemos o espectador girar a cabeça, de maneira episódica, para ver os elementos que estão ao seu lado ou atrás de si", responde o jornalista.

    Festival Varilux 2018

    Além do mais, ainda há outra questão predominante: em um ambiente de Realidade Virtual, o experimentador pode mover a cabeça para qualquer lugar do espaço ao seu redor, essencialmente criando sua própria montagem ou versão da trama proposta - não há espectador neutro, uma condição que cria um dos desafios mais complexos e interessantes da VR, na opinião de Fouzi:

    "Mas movermos muito a cabeça do espectador, perderemos o público ou a maior parte das pessoas verá filmes diferentes. Por outro lado, se fizermos o espectador olhar para a esquerda, para a direita e para trás de maneira episódica, ele vai apreciar os elementos que lá estão. São os elementos que fazem o espectador girar o olhar. Algo que gosto muito de fazer é colocar algo de espetacular atrás do espectador. Adoro quando o espectador gira para olhar para trás e fica de queixo caído quando encontra algo de inacreditável. Adoro quando isso acontece, adoro fazer isso. Quem sabe um cavalo, enorme, que surpreende o espectador. Ou quem sabe uma cachoeira ou uma árvore gigante. São pequenos truques como este que deixam uma experiência em Realidade Virtual muito mais interessante".

    IMAGEM E SOM

    Assim como no cinema tradicional, o som é frequentemente colocado em um segundo plano na Realidade Virtual em oposição às imagens - especialmente porque na VR, o espectador tem a chance de encontrar a narrativa a partir de um lugar extremamente privilegiado, bem no cerne da experiência. Entretanto, o ambiente sonoro, assim como em qualquer tipo de produto audiovisual, não pode e não deve ser negligenciado na Realidade Virtual:

    "De fato, o som na VR é determinante, é 50% do resultado final. No entanto, é a última coisa na qual trabalhamos. Poderíamos começar com o som e terminar com a imagem, mas essa é talvez uma herança do cinema tradicional, onde o som é sempre colocado em segundo plano. Mas o som é parte integrante de nossa realidade. Se não reconstituimos o som de maneira crível, nosso cérebro não acredita na realidade proposta. É simples assim. Temos uma experiência diluída. Mas se reconstituimos o som da maneira correta, a realidade proposta se torna crível, e em seguida podemos observar a finesse da ordem das memórias, do estresse. Podemos trabalhar com frequências graves quando tratamos de algo pesado, triste. Reimaginamos a cena através dos ruídos. E, graças ao som, nós também podemos dirigir o olhar do espectador para fazê-lo seguir nossa história. É proibido colocar setas indicando para onde os espectadores devem olhar e o som é uma forma mais bela, mais fina de fazer o espectador girar a cabeça. Se estou sentado e ouço passos atrás de mim, virarei a cabeça. Então, o som é muito determinante na Realidade Virtual".

    Festival Varilux 2018

    ENTRE O PRESENTE E O FUTURO

    Atualmente, em decorrência de limitações financeiras e logísticas, trabalhar a VR é um luxo: apenas indústrias sólidas, como a da medicina, do turismo e a bélica, ou grandes estúdios e poderosos produtores cinematográficos conseguem criar experiências em VR. Do outro lado do espectro, o consumo e a recepção são prejudicados por causa dos inúmeros aparatos requeridos para experienciar um filme de Realidade Virtual: os atuais óculos próprios para a mídia são caros, grandes e pesados.

    Por isso, surge uma complexa questão: seria a Realidade Virtual viável como tecnologia e meio artístico ou esta é apenas mais uma curiosidade tecnológica como o 3D, que encantou plateias do cinema tradicional durante alguns anos mas que, ultimamente, trouxe apenas prejuízos? Fouzi não tem todas as respostas, mas acredita que é necessário começar a procurá-las desde já, por mais que as soluções não sejam encontradas de imediato:

    "Hoje, a VR é uma tecnologia do presente que não se preocupa em se otimizar para as pessoas do presente, em se otimizar para o espectador. Atualmente, é complicado usar o óculos VR. Sempre foi assim, ver as imagens é complicado. E quando digo espectadores falo de minha mãe, de minha irmã, de meus filhos, de todo mundo. De mim e de você. Temos prazer em ver filmes em VR nas duas primeiras vezes, mas não veremos filmes em VR todos os dias. Nem mesmo uma vez por semana e nem mesmo uma vez por mês. Então, quando falamos de uma tecnologia verdadeiramente utilizável para o grande público, estamos falando de celulares, da televisão, do microondas... Essas são as tecnologias com objetivos industriais [...] É preciso que entre em todas as salas. A Realidade Virtual é a tecnologia do futuro. Quando os aparatos diminuírem, quando os óculos VR forem apenas um par de óculos, todo mundo terá o seu, sem problemas. Acredite em mim [...] Isso acontecerá daqui a cinco anos. Cinco anos. É preciso ter paciência. O que me interessa, hoje em dia, é que é preciso começar a criar filmes agora para aprender esta gramática, para desenvolvê-la e amanhã poder fazer os melhores filmes possíveis. Os filmes mais interessantes da atualidade estão em desenvolvimento há cinco, seis, sete anos. Então, é preciso começar agora para que, daqui a cinco anos, quando a tecnologia estiver de fato no ponto certo, nós possamos criar conteúdo [de qualidade] para os espectadores".

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