O cinema norte-americano de terror sempre encontrou no mercado brasileiro uma forte resposta de público. Produções como It - A Coisa, Invocação do Mal, Sobrenatural, Atividade Paranormal e mesmo projetos de molde independente como A Bruxa conquistaram resultados excelentes por aqui. A diversidade de filmes de terror é tão grande que mesmo títulos lançados diretamente em DVD em outros mercados (Sono Mortal, Selfie para o Inferno) foram exibidos nas salas de cinema aqui.
A produção brasileira, é claro, acompanha este interesse. Se o país é conhecido pelos clássicos de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, muitos cineastas jovens estão explorando o terror em todas as suas vertentes: o trash, o gore, o social, o psicológico...
No entanto, os projetos brasileiros ainda não se comunicam plenamente com o público. Os números de bilheteria dificilmente ultrapassam 100 mil espectadores, apesar de um entusiasmo cada vez maior dos críticos e dos festivais de cinema. Se o terror sempre foi um gênero tão popular, o que tem dificultado a sua expansão no mercado nacional?
O AdoroCinema decidiu conversar com quem realmente entende da questão: os diretores e produtores. Foram entrevistados Marco Dutra e Juliana Rojas (As Boas Maneiras, Trabalhar Cansa), Rodrigo Aragão (As Fábulas Negras, A Mata Negra), Marcos DeBrito (Condado Macabro), Gabriela Amaral Almeida (O Animal Cordial), Rodrigo Gasparini (O Diabo Mora Aqui) e a experiente produtora Sara Silveira (As Boas Maneiras, Trabalhar Cansa).
Descubra o que eles têm a dizer sobre questões de financiamento, distribuição, exibição e identidade nacional da cinematografia brasileira de horror.
Projetos de terror são mais difíceis de financiar?
Rodrigo Aragão: Nunca se produziu tantos filmes de gênero e com tanta qualidade e variedade. Nos últimos tempos as portas têm se aberto mais, mas historicamente sempre foi muito mais difícil. A biografia do Mojica prova isso pela dificuldade que ele enfrentou a vida toda. Filmes como Annabelle e It - A Coisa, que tiveram uma ótima bilheteria e uma popularidade absurda, provam que pode ser um bom negócio investir no gênero, então estamos tentando entrar ainda, apesar de no Brasil não ter tido até o momento nenhum sucesso de bilheteria.
Sara Silveira: Com As Boas Maneiras, nós partimos para a França, e os franceses tiveram a compreensão do que era nosso projeto. Ganhamos o Centro Nacional de Cinematografia, que é o dinheiro institucional francês, depois tivemos parceria com o Canal +, parceria da Arté, parceria da ZFD. O Brasil veio também com seus aportes de investimento, e finalmente, com o filme pronto, fizemos um caminho afrontando sempre o filme de gênero, abrindo portas para o filme de gênero. O filme de gênero é mais difícil de ser realizado do que uma ficção, um drama mais normal.
Marcos DeBrito: A maior dificuldade nem é o gênero, é o patrocínio, o incentivo. É muito complicado porque o cinema é, como a gente sabe, muito caro de se realizar, então apesar de existir um valor muito alto de investimento voltado para cinema, são poucos os vencedores, os ganhadores de prêmios de editais e Fundo Setorial. Não dá para premiar todo mundo, então a primeira dificuldade é essa.
Uma das lendas a respeito do filme de gênero é o fato de ser mais barato que as demais produções.
Sara Silveira: Filme de gênero não é mais barato que um drama, de jeito nenhum. Pelo contrário, porque tem seus efeitos visuais. Volto a dizer: é filme de risco, mais difícil de captar recursos, mais difícil de sair nas salas, o desafio sempre é maior. O dinheiro também é maior, mas com a nossa participação, com a coprodução a gente conseguiu pensar e sonhar. Os efeitos de As Boas Maneiras encareceram o filme: 30% do nosso orçamento vem dos efeitos realizados na França, tanto quanto os animatrônicos quanto o CGI, além do trabalho de pós no Brasil.
Juliana Rojas e Marco Dutra: Tivemos um grande aprendizado com os curtas que realizamos juntos, especialmente O Lençol Branco e Um Ramo. Ambos lidavam com uma ruptura dramática (e fantástica) dentro do universo doméstico da classe média. Tanto Trabalhar Cansa quanto As Boas Maneiras devem muito aos processos de escrita, filmagem e montagem dos curtas. Por conta deles, em As Boas Maneiras, nos sentimos seguros para arriscar mais no que se refere à mistura de gêneros dentro de um mesmo filme, e tivemos uma intensa experiência com efeitos especiais.
"É filme de risco, mais difícil de captar recursos, mais difícil de sair nas salas".
Gabriela Amaral Almeida: Isso depende da história. Pelo gênero, não dá para definir o quanto você vai ter no filme. Os projetos do Jacques Tourneur eram muito baratos, porque se apoiavam na psicologia dos personagens, no uso inteligente de truques de iluminação. Dentro de cada gênero há filmes dispendiosos e outros mais fáceis de serem feitos. No caso específico do terror, filmes com monstros ou efeitos especiais requerem muito trabalho de pós-produção, como Alien e O Exorcista.
Rodrigo Aragão: O cinema de gênero é muito difícil e trabalhoso, você tem que convencer o público de coisas que não existem... A não ser que você trabalhe com situações muito subjetivas como por exemplo em Atividade Paranormal. Mas no geral, você tem que produzir coisas que não existem, criar monstros, usar uma iluminação mais carregada, um enquadramento diferente, espremer dos atores um registro bem visceral, além de precisar montar cenários. Para o meu próximo filme, por exemplo, a gente está construindo o cenário todo. É uma quantidade absurda de trabalho de cenografia, de madeira, de serra, de isopor, então são quatro meses dedicados à construção do cenário. É bem trabalhoso.
Existe preconceito contra o terror nacional - do público, dos críticos, dos atores?
Gabriela Amaral Almeida: Ele sempre houve em relação ao horror, por provocar reações que às vezes são físicas, não são nem mentais, ou seja, não são tão elevadas do ponto de vista filosófico. Você sente nojo, sente pavor, você treme. São reações a princípio mais corpóreas, então historicamente ele tem uma má fama nos círculos “sérios” de avaliação cinematográfica. Hoje já se cansou de tentar encontrar uma nova terminologia para os filmes de horror: "pós-horror", "meta terror"... Isso diz mais respeito à recepção do que à criação, é uma tentativa de fazer com que esses filmes pareçam mais sofisticados ao público do que o bom e velho terror. Meu filme foi super bem recebido em todos os festivais de gênero do mundo, mas ele não foi abraçado pelos festivais de filmes “sérios”. Então a lição que eu aprendi é: essa frontalidade do gênero te coloca num nicho em que eu não tenho problema algum com estar, muito pelo contrário.
Rodrigo Aragão: O terror é um gênero que requer muito amor. Você tem que gostar muito e entender os clichês, os pilares, as fórmulas e saber trabalhar com elas. Porque se você nega isso, você frusta o público, e eu não quero frustrar a plateia. Quero acima de tudo divertir o espectador, por isso eu não gosto desse termo "pós-terror", porque quando você coloca o "pós" em qualquer movimento artístico, isso implica historicamente renegar o passado. O pós-terror para mim sugere negar o terror, dizer que o terror é uma coisa menor, e eu não acredito nisso. No Brasil, uma das coisas que me entristece é ver o filme de terror ser vendido comercialmente como “suspense psicológico”, o que atrapalha a coisa toda.
"O preconceito acontece mais pelo fato de ser brasileiro do que pelo fato de ser terror".
Juliana Rojas e Marco Dutra: O cinema de gênero ainda enfrenta preconceito no mundo tudo, por parte do público e da crítica. É considerado um gênero menor, mas se analisarmos com cuidado, vemos que muitos deles são profundamente políticos e servem de metáforas ou alegorias para nossas fobias. No Brasil, há um preconceito com o filme nacional (que é visto aqui quase como um gênero em si) e os filmes que têm mais alcance são as comédias, em parte por termos um histórico com as chanchadas, com as produções da Cinédia e também por causa do sucesso desse gênero no rádio e na televisão. Apesar disso, há um público crescente de fãs de horror no Brasil, e o país já conta com diversos festivais de cinema fantástico. O horror tem conquistado mais fãs com o sucesso de filmes e séries como The Walking Dead.
Marcos DeBrito: O preconceito acontece mais pelo fato de ser brasileiro do que pelo fato de ser terror. Quando você lê os comentários na Internet sobre os filmes de terror brasileiros, é de chorar. Basta ver o que as pessoas escreveram sobre os projetos do Rodrigo Aragão, que já tem uma puta experiência, numa matéria do UOL. As pessoas criticam o filme antes de ver. Condado Macabro teve críticas boas e ruins, o que é normal, mas antes de ser lançado a expectativa do nosso público é péssima. A pressuposição de que o filme brasileiro é necessariamente ruim, ou que vai tentar imitar o americano, destrói a expectativa de bilheteria. Eu peço que o público nacional tenha um pouco de paciência e também comece a ver as qualidades, e espere o filme estar nas salas para depois dar uma opinião. Espero que As Boas Maneiras faça as pessoas revisitarem a própria opinião.
Rodrigo Gasparini: O terror muitas vezes não é levado a sério pelos críticos. Sentimos isso na pele com O Diabo Mora Aqui. Muitas vezes a crítica que não é especializada em terror já começa desmerecendo o filme só por ele ser de terror. Também sinto isso muitas vezes com os profissionais no meio do cinema, muitas vezes até mesmo com atores. Com o público a situação é pior ainda, não só pelo filme ser de terror, mas por ele também ser nacional. Muitas vezes o grande público já chega com o pensamento: “Ah, filme brasileiro de terror deve ser um lixo”.
Como criar um terror "tipicamente brasileiro"?
Gabriela Amaral Almeida: É preciso enxergar a necessidade de criação de uma mitologia própria do medo, não pegar isso emprestado e colar de outra cinematografia na nossa realidade. O filme de terror é um reflexo das angústias de cada sociedade, então se a gente pega um filme de terror norte-americano dos anos 1980, e a gente vê uma proeminência do slasher, do assassino que persegue e mata mulheres e sempre a garota que sobrevive é a virgem, então têm uma série de marcas que refletem a realidade daquela sociedade em determinado período. Um dos principais desafios no fazer cinematográfico do horror é encontrar essas linhas de tensão características da nossa vivência e transformar isso em marcas de gênero.
Rodrigo Aragão: Por natureza, o brasileiro é um povo que tem muito de fantástico na sua cultura, a gente sempre está flertando com o realismo fantástico. Talvez o público ainda não tenha se conectado com o nosso cinema de horror porque estes novos filmes são muito bem feitos, mas poucos têm apelo popular, algo que atraia o público para ir no cinema, principalmente quando as salas hoje têm uma bilheteria predominantemente de jovens, em shopping centers, que querem passar por uma experiência coletiva. Eu acho que muitas produções brasileiras ainda não tiveram uma bilheteria boa por oferecerem poucos sustos, não terem uma carga tão emocional quanto deveriam. Às vezes é um filme muito bem feito, um roteiro muito bacana, mas a execução fica meio decepcionante frente à plateia.
"O filme de terror é um reflexo das angústias de cada sociedade".
Marcos DeBrito: O filme precisa ter uma mídia muito focada na questão de ser um representante brasileiro, como perto do fim do ano, quando se escolhe “o filme que vai representar o Brasil no Oscar”, e então cria-se uma expectativa que se traduz um público. Estou muito ansioso para assistir a A Mata Negra, porque a gente precisa de um filme que acerte, e até agora não acertamos. O Rastro não acertou, O Caseiro não acertou, o Condado não acertou. Todos têm as suas qualidades, mas não acertaram no que diz respeito ao público. O espectador tem se interessar pelo fato de ser um filme brasileiro de terror, e quando a gente conseguir levar um milhão de espectadores para o terror nacional, o mercado vai se consolidar com uma melhor oportunidade para todo mundo.
Rodrigo Gasparini: Não sei o que é um terror tipicamente brasileiro. Sem dúvida, uma história que use do nosso folclore e das nossas lendas urbanas está mais perto dessa temática tipicamente brasileira. Mas honestamente, nunca parei para pensar nisso em nenhum dos meus projetos, gosto de pensar que o filme sempre será tipicamente brasileiro, mesmo quando não se pensa nisso, já que ele é feito por brasileiros, somos brasileiros e isso está enraizado em nós de maneira extremamente complexa.
Quais são os desafios de distribuição e exibição?
Sara Silveira: A gente espera que o público brasileiro tenha compreensão e se interesse por ver um filme diferente, um filme bizarro, porém extremamente interessante. Eu já tenho mais de 30 anos de cinema e mais de 50 filmes brasileiros na carreira. Eu quero acreditar, e continuo acreditando, na possibilidade de fazer este tipo de filme.
Gabriela Amaral Almeida: Estamos num momento em que não há mais dificuldade de acessar outras cinematografias, a quantidade de informações é absurda. Os jovens de hoje não estão restritos à programação que eu tive na minha infância, com os títulos disponíveis na videolocadora e os filmes veiculados na TV aberta. Hoje você vê de tudo não apenas na TV fechada, mas principalmente na Internet. O primeiro Blu-Ray de O Animal Cordial vai ser lançado na Alemanha. A minha expectativa é que as pessoas assistam ao filme e se liguem nos personagens. Não é terror norte-americano, é um filme sobre os nossos terrores.
"É comum o cinema norte-americano gastar mais com divulgação do que com a produção".
Rodrigo Gasparini: Mesmo que um filme de terror nacional consiga estar em centenas de salas de cinema, nada disso vai importar se o filme não tiver uma divulgação pesada, que faça com que o público saiba do filme e tenha vontade de assistir. É comum o cinema norte-americano gastar mais com divulgação do que com a produção. Essa é a principal dificuldade: divulgar o filme de uma maneira que atraia o publico. Nós conseguimos chegar no cinema e nas outras plataformas, mas a dificuldade é ser notado pelo grande público.
Marcos DeBrito: Em 2015, Condado Macabro entrou no Fantaspoa, junto de sete ou oito produções brasileiras de gênero. Desses filmes, apenas dois conseguiram distribuição nacional: o Condado Macabro e O Amuleto do Jeferson De. Os outros filmes tinham qualidade para ir para ao cinema - porque quando a gente fala em cinema comercial não é só questão de boa vontade, é preciso ter uma capacidade técnica mínima ali. Mas a distribuidora vê os filmes de gênero com o mesmo olhar que seu público, ou seja, com preconceito. O distribuidor brasileiro sabe que o público não vai aceitar um filme que não seja 100% excelente tecnicamente ou não tenha atores globais. Tem que ter algo que atraia o público mediano para assistir ao nosso gênero com outros olhos. Se os filmes de terror não têm isso, eles acabam caindo no ostracismo.