"Este filme me permitiu usar a mágica do cinema para fazer uma coisa que a ciência não consegue que é trazer os mortos de volta à vida", disse, em tom meditativo, o diretor Rafael Terpins ao apresentar Meu Tio e o Joelho de Porco no último dia de sessões da dedição deste ano do festival Cine PE na noite de segunda-feira (04).
O filme que encerrou a mostra competitiva de longas-metragens do festival pernambucano propõe um resgate afetivo da vida e obra de Tico Terpins, tio do cineasta e líder da vanguardista banda de rock paulistana Joelho de Porco. O conjunto, muitas vezes relegado a um lugar de esquecimento na historiografia do rock nacional, teve uma presença única no cenário musical brasileiro por conta da postura debochada, das crônicas piadistas que faziam da vida na maior capital do país e da caótica imprevisibilidade nos palcos e aparições públicas. Eram como uma espécie de precursores dos Mamonas Assassinas. Por conta da veia anárquica, o Joelho de Porco é por vezes apontado como uma banda proto-punk, embora musicalmente o conjunto tenha explorado diversas vertentes musicais e a conexão com o movimento punk tem mais a ver com a filosofia.
Após realizar os curtas Batalha, a Guerra do Vinil (2007) e A Guerra dos Gibis (2012), Rafael Terpins, animador por formação, trabalha em muitas frentes neste projeto claramente pessoal que marca sua primeira incursão pelo território do longa-metragem. O filme esboça fugir do formato de documentário tradicional — o que nunca faz completamente — e apresenta uma série de recursos para além da narrativa mediada apenas por entrevistas e imagens de arquivo. Como prova do envolvimento afetivo com o tema, o próprio Rafael ganha a tela como uma espécie de investigador das lembranças do tio e interpreta uma versão de si mesmo enquanto dirige um conversível por lugares de São Paulo importantes para a trajetória do Joelho de Porco. Rafael é acompanhado por um boneco, que ganha vida em animação stop motion, e representa seu próprio tio, falecido em 1998, como uma presença ácida, que interrompe e contesta as lembranças dos entrevistados — como o típico diabinho de desenho animado.
Apesar de se tratar de mais um exemplo de documentário nacional que traz um cineasta explorando a vida de um membro de sua família, Rafael consegue a distância necessária para não compor uma hagiografia de Tico. As anedotas dos familiares e companheiros de banda não poupam o homenageado de críticas entre os elogios. A principal força do filme está no próprio catálogo do Joelho de Porco. Rafael deixa as canções do álbum "São Paulo - 1554/Hoje" servirem de elo narrativo entre as passagens e provarem, com suas qualidades, a relevância de se resgatar a obra da banda.
No último dia de sessões do Cine PE, os curtas mais uma vez mantiveram um bom nível — embora, em conjunto, não tenham superado a ótima sequência de trabalhos no formato exibida no dia anterior.
Edney, de João Roberto Cintra, que abriu a Mostra PE na noite de segunda-feira (04). O curta tem como protagonista um homem que, de dia, é Ed, um apático auxiliar de serviços gerais em um restaurante de Recife, e à noite é Ney, um cantor que emula os trejeitos e a expressiva liberdade (que tanto lhe falta durante o dia) de Ney Matogrosso. Diante dessa situação, a presença de um colega de trabalho alvo do afeto reprimido de Edney pode se tornar um elo entre suas duas vidas. A narrativa pode até ser simplória, mas o curta consegue ser eficaz em representar a melancolia de uma figura que é obrigada a reprimir seus desejos. Ao agradecer o festival pela seleção, um dos produtores do filme mencionou que o Cine PE proporcionou a ele o contato com filmes de Kléber Mendonça Filho e Cláudio Assis, e disse que a obra desses cineastas foi uma influência em Edney.
A Mostra PE foi encerrada na edição deste ano com um curta de pegada distópica, Seja Feliz, de Diego Melo. Competente em termos técnicos, o filme parte de uma premissa absurdista para comentar a submissão do indivíduo à burocracia. Estamos em um futuro em que o caminho para a imortalidade foi encontrado. Quem quiser deixar de viver tem de, obrigatóriamente, entrar com um processo em um órgão governamental. Com boas atuações — o tom sordidamente cínico prentendido pelo filme se deve muito à performance do funcionário público —, e um bom roteiro, Seja Feliz mostra que em um mundo hipercapitalista e autoritário, mesmo as maiores descobertas da ciência serão cooptadas pelo o sistema como instrumento de controle.
O curta paulista Sweet Heart, dirigido por Amina Jorge, abriu a Mostra Curta Brasil. A fotografia esmaecida ajuda a compor uma obra sobre as descobertas da adolescência em um contexto de hibridismo cultural, controle familiar e despertar da sexualidade. A protagonista é uma jovem filha de descendentes chineses que trabalha no restaurante da família no bairro da Liberdade, em São Paulo, melhor cenário possível para uma trama como esta. A manifestação do desejo feminino é representada de forma natural e o olhar de uma diretora mulher para tais questões fez diferença nas escolhas estéticas e de discurso.
"O Sweet Heart é um filme que a gente fez com uma equipe formada por mulheres que resolveu se juntar e fazer um filme sobre as preocupações que incidem sobre a nossa adolescência enquanto mulheres. Há a representação da descoberta da nossa sexualidade, que, de um modo geral, em 120 anos de cinema, ganhou representações extremamente machistas e misóginas", avaliou Amina ao apresentar o filme para a plateia do Cinema São Luiz.
Cine S. José, de Adalberto Oliveira, foi o curta mais esquecível da noite. A obra se reduz a uma mera colagem de registros sobre um cinema histórico do interior de Pernambuco que passou por um processo de decadência nos anos 80 e ganhou uma reforma uma década depois.
*O AdoroCinema viajou para o Cine PE a convite da organização do evento.