Com a coroação do japonês Shoplifters como melhor filme da 71ª edição, o festival de Cannes 2018 chega ao fim. Foram doze dias intensos em que o AdoroCinema assistiu a mais de 40 filmes, fez dezenas de notícias, críticas, entrevistas em vídeo e debates ao vivo no Facebook.
A competição oficial apresentou um nível elevado, conseguindo incluir tanto dramas tradicionais (Shoplifters, Capharnaum) quanto comédias (BlacKkKlansman, Under The Silver Lake), suspenses (Burning, Knife + Heart) e obras experimentais (The Image Book).
Os títulos realmente fracos, a exemplo de Yomeddine, foram raros. De modo geral, Cannes continua trazendo os "blockbusters do cinema de arte", ou seja, enormes coproduções entre vários países, com orçamento considerável, que geram resultados refinados como Cold War e Ash is Purest White. As obras de baixo orçamento, ou de linguagem mais ousada, ficaram fora da disputa pela Palma de Ouro.
Talvez por isso, os prêmios do júri oficial foram entregues a diretores já recompensados em outras edições: Hirokazu Kore-eda levou prêmios por Pais e Filhos e Ninguém Pode Saber, Alice Rohrwacher foi recompensada por As Maravilhas, Nadine Labaki e Spike Lee venceram prêmios ecumênicos por E Agora, Aonde Vamos? e Febre da Selva, respectivamente.
No entanto, mostras paralelas como Um Certo Olhar trouxeram obras excepcionais de diretores estreantes ou com pouca experiência, a exemplo de Girl e Gräns. Talvez filmes deste tipo também merecessem um espaço entre os grandes. Resta esperar que a seleção seja mais arriscada nos próximos anos, tanto em formas de fazer cinema quanto na origem dos filmes - nenhum filme sul-americano disputava a Palma de Ouro este ano, por exemplo.
No caso do Brasil, o país emplacou copodruções em mostras paralelas - e uma exibição especial, O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues, que já concorreu três vezes à Palma - que se saíram muito bem, obrigado. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos levou o Prêmio Especial do Júri na programação da Um Certo Olhar; Diamantino (Brasil, Portugal e França) ficou com o gratificação máxima da Semana da Crítica. E o curta brasileiro O Órfão, de Carolina Markowicz, abocanhou o Queer Palm Prize.
Apesar de se tratarem de gêneros completamente diferentes, em comum, todos trazem um olhar voltado a temáticas de representatividade que dialogam com questões contemporâneas, valorizadas nas seleções de Cannes.
O grito das minorias, aliás, foi ouvido no famoso tapete vermelho do evento. Depois de a "comunidade francesa" ter sido criticada por ir de encontro ao clamor de movimentos como o Time´s Up e Mee Too (vale lembrar que Catherine Deneuve endossou uma carta aberta de repúdio à suposta "onda de puritanismo" que ganhava força nos Estados Unidos), 16 atrizes negras protestaram contra o racismo, poucos dias depois de 82 mulheres clamarem por igualdade de gênero na indústria, lideradas pela presidente do júri, Cate Blanchett.
As reivindicações falaram mais alto do que a principal polêmica do ano passado, quando a Netflix manteve a recusa em lançar nos cinemas os títulos então selecionados para a competição. E de uma certa maneira, serviram para alfinetar o argumento do diretor artístico do festival, Thierry Fremaux, de que teria se orientado por critérios de "qualidade", e não "gênero", na seleção dos 21 títulos em disputa pela Palma (vale lembrar: 18 deles dirigidos por homens, três por mulheres).
Claro, um festival (mesmo Cannes) não se vende para o mundo apenas com histórias de "Jó" passadas em comunidades pobres de países subdesenvolvidos. O contraponto (sempre há) deste ano, foi a estreia mundial de Han Solo - Uma História Star Wars. Ainda: também chamou a atenção a "repatriação" de Lars von Trier, persona non grata no evento desde 2011, quando fez comentários antissemitas na coletiva de imprensa de Melancolia.
A inclusão do novo filme do diretor dinamarquês, The House that Jack Built, soa mais como uma atitude midiática - independente da qualidade da obra -, do que como reconhecimento artístico, propriamente, na medida em que o filme não estava apto a disputar prêmios (mesmo considerando o fato de que muito provavelmente, pelo perfil do júri deste ano, o filme não levasse caneco nenhum).
No que diz respeito à premiação, o júri oficial privilegiou obras de vocação mais comercial: os três principais vencedores, Shoplifters, BlacKkKlansman e Capharnaum, tocam em questões universais, como a delinquência, a pobreza e o racismo, em tom leve (no caso do japonês), paródico (caso do americano) e lúdico (caso do libanês). Temas mais específicos como o cenário musical soviético (Leto), o mundo underground LGBT (Knife + Heart) e o sindicalismo (At War) saíram de mãos vazias.
Propostas mais pessimistas de cinema, como Burning, também foram ignoradas na premiação. Vale lembrar que o suspense de Lee Chang-dong era o franco favorito dos críticos, quebrando o recorde de maior nota de todos os tempos no quadro da revista Screen (com 3,8/4), além de levar o prêmio da crítica internacional.
Pelo menos Cate Blanchett e os demais jurados souberam recompensar o belo trabalho de Marcello Fonte em Dogman, assim como a direção excepcional de Pawel Pawlikowski em Cold War, garantindo a presença de alguns queridos da crítica internacional entre os vencedores. O próprio Shoplifters, diga-se de passagem, foi muito bem recebido pela imprensa.