Nesta quinta-feira, estreia nos cinemas um documentário brasileiro bastante raro. Feito por cinco diretores diferentes, Pagliacci retrata a vida dos palhaços profissionais, refletindo as dificuldades de sobrevivência da arte popular no Brasil, e a maneira como as artes circenses evoluíram nas últimas gerações.
O AdoroCinema teve a oportunidade de conversar com um dos cineastas, Luiz Villaça, além de Fernando Sampaio (foto acima), grande artista de circo, que formava uma dupla premiada com o falecido ator Domingos Montagner.
Eles explicam de que maneira o circo resiste às transformações sociais, e como a morte de Domingos transformou o projeto, já em andamento:
Pagliacci é um filme coletivo. Como ocorreu a direção a dez mãos?
Luiz Villaça: A ideia inicial veio no mês de agosto [de 2016]. O Domingos [Montagner] tinha falado com o Fê [Fernando Sampaio] durante um jantar na minha casa: "Vamos fazer um documentário? Tem os 20 anos do La Mínima [trupe circense], tem a montagem do Pagliacci, que coroou os 20 anos adaptando uma ópera. A gente poderia fazer um documentário sobre o palhaço". Durante a conversa eu sugeri começar com o palhaço tomando café, saindo para trabalhar e tudo mais.
Isso ficou na cabeça. Em outubro, quando o processo de ensaio começou, chamei quatro jovens diretores de que eu gosto muito, para entender melhor essa dinâmica de grupo própria ao circo: o Chico Gomes, o Júlio Hey, a Luiza Villaça e o Pedro Moscalcoff. Nós conseguimos trazer para o cinema esse trabalho muito orgânico entre cinco pessoas. Não tinha orçamento algum, zero. Começamos a construção do documentário com as primeiras gravações dos ensaios, captando aquele material, e a partir disso sentimos a necessidade de alguns especialistas aqui, outros palhaços lá...
Quando o material estava relativamente maduro, tivemos o apoio da Globo Filmes, da Globonews e do Canal Brasil. Mas foi um projeto de grupo muito próximo ao circo. Enquanto eles ensaiavam a peça, era como se a gente também estivesse elaborando a melhor forma para essa história de amor e de paixão que a gente tenta, de uma certa forma, contar.
Fernando Sampaio: O espetáculo do Pagliacci, a ópera, é de fato uma história de paixão e amor. E morte. Estes são os temas principais.
Um dos focos os filme é a resistência do circo tradicional, com tenda, itinerante, que se oferece como diversão popular.
Fernando Sampaio: Na verdade, nós também temos um circo de médio porte, o Circo Zanni, que não itinera muito. O nosso respeito por esses caras que itineram o ano inteiro, que vêm da tradição do circo, é muito grande. Eles são grandes guerreiros, é algo impressionante. Talvez esta seja uma das artes com os orçamentos mais baixos, com poucos editais e de baixo valor, então é preciso ser muito persistente. Também existe o fato de estes artistas serem proprietários de circo, e só olharem para frente.
Luiz Villaça: O circo sempre vai ser um grande exemplo da arte. Quando a gente vai no circo e vê aquele mundo de maravilhas, não imagina o que tem por trás, quanta gente precisa vender o almoço para poder jantar. A grande palavra da turma do circo e é a perseverança. Todo dia você tem que fazer alguma coisa, e o mesmo vale para o cinema. Você sempre precisa ligar para alguém, para confirmar se vai poder mesmo fazer o filme, ou visitar uma locação para talvez filmar nela dentro de cinco anos.
Se não for persistente, você não faz, e o circo torna isso muito claro. O circo funciona como exemplo da vida de artista neste país que hoje discute o fim do DRT [registro profissional na Delegacia Regional do Trabalho], por exemplo. Existe uma coisa de paixão e de amor pelo ofício que nos empolga muito, até desestrutura. Os caras embarcam no mais profundo amadorismo, no sentido bom da palavra, que é amar o que faz.
Como percebem a posição do circo de porte pequeno em relação aos grandes espetáculos circenses estilo Cirque du Soleil?
Fernando Sampaio: Isso é bem distante da realidade que eu e meus amigos temos no circo. É compreensível ter essa coisa do show business, mas nós temos um pouco de distanciamento. Já vi um espetáculo do Cirque du Soleil, é evidente a força daqueles grandes artistas.
Luiz Villaça: No fundo, isso é como perguntar para um cineasta independente como ele vê o Batman. Esse tipo de espetáculo é extremamente positivo e necessário porque, de uma certa forma, grupos como o Cirque du Soleil impulsionam o circo de modo geral. Como cineasta, posso ficar desesperado com a existência do Batman porque não dá para esses filmes chegarem no Brasil e ocuparem quase todas as salas, mas existe uma importância que as pessoas assistam ao Batman. O problema é elas assistirem apenas ao Batman, ou apenas ao Cirque du Soleil.
Quando você vê a tenda do circo montada no Parque do Povo, este é um presente para a cidade. Assim como no cinema existe um trabalho super importante do SPcine, que coloca cinema nos CEUs [Centros Educacionais públicos em SP], garante o mínimo de reserva para exibir os nossos filmes. Mas essas duas formas precisam caminhar juntas, não se pode criticar o grande para crescer o pequeno.
A figura do Domingos Montagner é obviamente muito importante no filme, mas ele é representado sobretudo pela ausência.
Luiz Villaça: Se não tivesse acontecido o que aconteceu, o Domingos estaria nos ensaios do Pagliacci. Eu falava para o Fê: “A única coisa que não quero é fazer um documentário póstumo", uma homenagem póstuma. Então decidimos manter a linha do que foi pensado naquele jantar em 2016. O Domingos não está nas cenas do Pagliacci porque não fez o espetáculo, mas ele está no La Mínima, no momento em que falamos sobre a dupla do Augusto e Branco. Foi assim que ele e o Fê extrapolaram e caíram no teatro, inclusive ganhando prêmio de melhor ator no teatro, o que mostra o talento dos dois.
Não vou esconder de você que é filme que nós tentamos fazer em cinco corpos e dez mãos, com muita delicadeza. Obviamente, existia uma dificuldade até pelo amor pelo que representa o circo e o filme, e é por isso que estamos aqui. A tentativa foi fazer seguir o pensamento original do filme, e que o Domingos entrasse no momento em que ele pudesse entrar no filme.
No que diz respeito às imagens, vocês trazem para o cinema algo muito lúdico nos enquadramentos e na luz. Algo próprio do circo.
Luiz Villaça: É verdade, mas eu seria mentiroso se não dissesse o seguinte: primeiro, o circo por si só já tem uma estética de paixão. Desde criança você tem a imagem do circo. Talvez os pequenos que estão vindo tenham a imagem de um iPhone, mas a gente ainda carrega uma visão muito lúdica do circo. Segundo, a montagem do Pagliacci teve uma direção de arte, fotografia e figurino do Márcio Medina, um diretor de arte do teatro muito importante. É impressionante como o circo fotografava bem. Onde nós colocávamos a câmera, sempre ficava muito bonito.
Essas duas coisas, misturadas com uma parte mais documental e com imagens de arquivo geraram uma estética de que eu também gosto muito. Foi uma confluência de coisas que aconteceram e nos surpreenderam. Nós filmávamos e falávamos “Caramba, que lindo!”. Quando eu assisti à peça, jamais imaginei que ela fotografasse tão bem.
Pensando no encontro entre duas artes diferentes, de que maneira a linguagem específica do cinema reforça, ou distorce, a linguagem do circo?
Fernando Sampaio: Nós podemos achar que o circo é grande, mas nossa origem é muito simples. Uma dupla de palhaços que se conhecem em uma escola de circo e criam uma companhia chamada “La Mínima” certamente é uma parceria simples. A gente passa a vida trabalhando, envereda para o teatro, monta muitos espetáculos, e depois de muitos anos a gente recebe este presente do Luiz, da Bossa, e de todos da Globo Filmes. Ter o nosso trabalho no cinema, na tela grande, é incrível, inacreditável, parece um sonho.
Luiz Villaça: Mas somos nós do cinema que bebemos do trabalho dos artistas de circo, porque você começa a frequentar a rotina deles e entende a noção de grupo ali muito forte, a vontade de fazer não importa como, de dar um jeito. Isso foi uma experiência muito legal para a gente. Nós aprendemos mais com eles do que eles com a gente.