Fotógrafo, diretor, produtor, roteirista: quando se trata do mundo do audiovisual, o cineasta Tadeu Jungle (Amanhã Nunca Mais) já fez de tudo e mais um pouco. Mas nem mesmo toda sua experiência de mais de três décadas de carreira o preparou para o salto que daria do meio do cinema tradicional para a emergente e impressionante Realidade Virtual. Responsável por duas produções que circularam por festivais internacionais - os documentários em VR (virtual reality) Rio de Lama e Fogo na Floresta -, Jungle conversou com o AdoroCinema durante o Rio2C e falou sobre o desafios de se trabalhar com a Realidade Virtual, sobre os novos questionamentos éticos que a mesma acarreta e o futuro do audiovisual:
Por que você escolheu a cidade de Mariana como seu ponto de partida? Por que o desastre provocado pela Samarco - o maior desastre ambiental da história brasileira e que devastou por completo a cidade de Bento Rodrigues - o motivou a deixar o posto de experimentador da Realidade Virtual para se tornar também um diretor de VR?
Depois de um mês da tragédia [ocorrida em novembro de 2015], a gente só ouvia 'marrom', via as imagens, as fotos, mas as pessoas já estavam anestesiadas. Então, aquele era o lugar para levar as pessoas e tentar criar um maior impacto, uma transformação, uma denúncia. Foi sem nunca ter filmado uma Realidade Virtual que fiz o Rio de Lama. Tinha alguma experiência, já tínhamos feito testes, mas eu nunca tinha filmado. Pegamos câmeras emprestadas e saiu o Rio de Lama. De lá para cá, tive certeza que era isso, que essa é a nova forma de comunicação, a nova forma de contar histórias. Tenho certeza que estamos no começo, mas já existem muitas coisas boas articuladas. A Realidade Virtual é inexorável. A Realidade Virtual veio pra ficar e vai tomar a vida de todos nós em breve.
A formação da memória é muito complexa no Brasil. Não formamos nossas próprias lembranças como sociedade porque nossos documentos estão quase sempre restritos aos museus ou a lugares e estátuas cujas importâncias desconhecemos. A Realidade Virtual, por sua vez, traz um impacto na formação da memória, modifica esse processo. Como a VR pode melhorar o acesso à memória no Brasil? E quais são as responsabilidades éticas e fisiológicas de trabalhar com a memória na Realidade Virtual?
Para mim, a memória é algo muito importante e que agora está ligado à Realidade Virtual [...] Outro elo que me liga à memória é a fotografia. Eu fui muito menos fotografado do que os jovens são hoje em dia. Ainda tenho memórias do meu avô e da minha avó, lembro de cenas deles, mas as primeiras imagens deles que me vem à mente são das fotos que tenho com eles [...] Hoje, podemos gravar um filme de Realidade Virtual sobre essa mesma cena trivial, familiar, de um jantar ou o que quer que seja. O menino, quando crescer, quando tiver 30 anos, decide olhar para quando tinha cinco. Ele vai ver claramente o avô, a avó, o pai, a mãe e ele agindo e sendo. O que isso vai transformar na mente das pessoas? Como a gente vai reagir afetivamente a isso? [...] A Realidade Virtual vai trazer um questionamento muito grande para todas essas memórias. E só estou falando das afetivas, familiares. Isso vai ser transformador no futuro.
O documentário sempre foi uma corrente do cinema ligada à verdade, mas a Realidade Virtual vai complicar essa noção porque, conforme a tecnologia avançar, estaremos cada vez mais imersos em um mundo virtual. Onde será possível traçar a fronteira entre o real e virtual? E onde é que a Realidade Virtual pode começar a se tornar uma ferramenta nociva para a humanidade?
Essa pergunta também deve ter sido feita ao Santos Dumont quando ele inventou o avião. Quando o avião vai deixar de ser um meio de transporte maravilhoso e rápido para se transformar em um agente que leva bombas? Quando a internet vai deixar de ser essa ferramenta que nos conecta e vai se tornar um veículo viciante, que nos traz tantas fake news através de suas redes sociais? Me parece que grande parte das tecnologias tem os dois lados [...] Eu acredito, como realizador de audiovisual, como contador de histórias em diversos níveis, ficcionais, documentais, publicitários, que é o meu dever entrar nesse meio para fazer coisas interessantes e que transformem o mundo em um lugar melhor, que criem um impacto social positivo [...] Depende muito do conteúdo que você quer fazer. Minha missão hoje é fazer conteúdos transformadores dentro da Realidade Virtual [...] Filmes curtos de cinco minutos podem te levar para outro mundo. Uma coisa é contar histórias, outra é viver histórias. A Realidade Virtual tende ao storyliving, é um lugar onde você vai viver uma história. Isso tem impactos que ainda não conhecemos, mas que são potentes.
Você afirmou que partiu de uma narrativa de entretenimento em Fogo na Floresta para atrair a atenção do espectador à denúncia realizada no final do filme. Como dosar esse conceito para que um documentário como este, que mostra um dia em uma aldeia indígena na Amazônia, não se transforme em uma espécie de turismo etnográfico alienado?
No caso da Realidade Virtual, temos um espanto muito grande das pessoas pelo meio no momento. Agora, o experimentador vai ficar espantado por qualquer coisa que apresentarmos na Realidade Virtual. Na sequência, se você não tiver uma boa história, o filme não vai funcionar de maneira nenhuma. Quando você lê Rio de Lama - A Maior Tragédia Ambiental do Brasil, você sabe que vai ver algo pesado, trágico. No Fogo na Floresta, apesar do título, o subtítulo é "Um Dia na Aldeia do Povo Waurá". O experimentador pode conhecer como vivem os índios através da Realidade Virtual. É isso que acontece. Só que no final tem o drama sobre os incêndios na floresta. Fica claro quem é que causa os incêndios e que nós temos que tomar uma atitude sobre isso. É uma questão de narrativa.
Quais foram as dificuldades que você encontrou - se é que encontrou alguma - quando fez a transição do cinema tradicional para a Realidade Virtual?
Nossa! O espanto para quem, sabe, sempre trabalhou atrás das câmeras... Agora você não tem atrás das câmeras. É claro que existem técnicas. Você pode filmar uma parte e substituir na pós-produção, pode dirigir os atores mais próximos da câmera. Mas a qualidade da fotografia, a ideia de contar uma história sem plano/contraplano, sem close, sem movimento por enquanto... É uma série de elementos que chamo de ABC do VR, "ABC VR", que vamos aprender, é a nova gramática dessa nova linguagem. Temos que aprender a falar em Realidade Virtual, falar dentro da Realidade Virtual. É um grande desafio porque você não sabe como narrar ainda [...] É muito empolgante, espantoso e difícil. Mas também é muito mágico porque uma nova linguagem está surgindo agora, uma linguagem que muitas pessoas estão descobrindo ao mesmo tempo. Fazemos parte de um tempo histórico, o começo da Realidade Virtual. O espectador que viu os primeiros filmes dos Irmãos Lumière não sabia que o cinema seria tão grande, mas hoje nós sabemos que a Realidade Virtual será tão grande assim, que vai tomar conta da vida da gente. Estamos fazendo parte do nascimento dela, é muito instigante fazer parte desse momento.
Você tem um histórico mais ligado à não-ficção, mas também já rodou uma ficção no cinema tradicional [Amanhã Nunca Mais, comédia estrelada por Lázaro Ramos]. Você também pretende migrar para o meio ficcional na Realidade Virtual?
É o próximo passo. Você pode inscrever um projeto na ANCINE e anotar que o projeto é de Realidade Virtual. A ANCINE já sabe que isso tem que ser parte das coisas, o Alejandro Iñarritú já ganhou um Oscar! A Realidade Virtual é prima do cinema porque também é audiovisual. Falta aporte de recursos para experimentar a história. Estamos muito atrás aqui no Brasil. Já existem muitas coisas incríveis nos Estados Unidos, na Europa. Quando um estrangeiro chega aqui perguntando sobre nossas produções, nós só temos um pires de produtos para mostrar. Já poderíamos ter uma bacia, uma piscina de coisas para mostrar [...] É uma questão de tempo.