Chega aos cinemas nesta quinta-feira o grande vencedor do último festival de Brasília: o drama Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans.
Os cineastas retomam a tradição do cinema brasileiro em retratar a vida dos operários, dos pequenos trabalhadores informais pelas cidades no interior do país. O personagem principal é Cristiano (Aristides de Sousa), trabalhador cujo diário é encontrado por um adolescente. Através das leituras, descobrimos a história de mudanças, trabalhos e amores do silencioso personagem.
Desde a primeira exibição, Arábia tem sido aclamado em diversos festivais e pelos críticos. De acordo com Lucas Salgado, do AdoroCinema, esta é "uma obra sobre a defesa do homem simples e trabalhador, do brasileiro violado todos os dias por um sistema opressor. Neste sentido, valoriza-se o tom naturalista de muitos dos diálogos do filme. É impossível não se divertir com Cristiano".
O AdoroCinema aproveitou para conversar com os diretores sobre o projeto:
Vocês trabalham com personagens pouco visíveis nas ficções brasileiras recentes, como peões, pedreiros, catadores de frutas. Como criaram este protagonista?
João Dumans: Estes personagens foram muito retratados nos anos 50, nos anos 60 especialmente, e depois até os anos 70. Na segunda metade do século XX, até os anos 90, o personagem do trabalhador é retratado de diferentes maneiras. Ele aparece no Cinema Marginal e especialmente no Cinema Novo, pela preocupação em construir no cinema aquilo que a literatura tinha feito pelo Brasil: criar uma narrativa de formação da identidade brasileira a partir do povo. Isso era um programa que estava por trás do Cinema Novo, e inspirou a frequência com que os diretores recorreram a personagens ligados à terra, ao trabalho urbano, à indústria.
A gente fez esta mesma pergunta quando começou o filme. "Por que o cinema brasileiro abandonou, de certa forma, o personagem do trabalhador?". Olhando retrospectivamente, isso tem a ver com o fato de que a realidade realizou o projeto no momento em que Lula, um trabalhador, se tornou presidente do país. Talvez a questão do trabalhador tenha sido resolvida por uma estranha conjunção das coisas. Não só pelo fato de a gente ter um presidente um trabalhador, o que de certa forma realiza uma utopia, pelo menos minha, de ver uma pessoa dos extratos populares chegar à presidência do país.
Mas ao mesmo tempo pelo boom econômico, pela efervescência econômica que a gente vivia, quando havia trabalho disponível. Essa euforia era uma ilusão de que a questão do trabalhador estaria provisoriamente superada. As pautas e questões políticas mudaram também, a própria questão do trabalho começou a ser colocada de outras maneiras. Mas na verdade isso era uma ilusão mesmo, porque os direitos adquiridos são fáceis de perder - muito mais fácil do que adquirir.
Hoje isso está no centro do debate político brasileiro, em todos os sentidos. Não só pelo desemprego, mas pelas novas leis de precarização. A gente começou a filmar em 2014, com um roteiro escrito em 2013. Essas questões não estavam claras na época, então houve uma coincidência histórica pelo fato de o filme ficar pronto no momento em que essas questões se tornaram essenciais e pautaram o debate público no Brasil. Para nós foi curioso perceber isso, e ao mesmo tempo muito triste porque isso implicava perceber um retrocesso enorme em relação à questão do trabalho.
A vida do personagem principal é vista pelos olhos de um garoto distante desta realidade, através de um diário encontrado. O olhar de fora equivale ao ponto de vista do espectador?
Affonso Uchôa: Acho que sim. É um convite a quem está vendo o filme, para se colocar no lugar daquele garoto e, de certa maneira, experimentar a sensação do encontro desse jovem garoto com aquela vida tão diferente da dele e, ao mesmo tempo, tão cheias de eventos. É uma situação de se encantar, de ver que uma vida pode esconder segredos, potências muito maiores do que podemos supor. Isso passa pela identificação com o espectador e o personagem do André.
Essa identificação pode chegar em outros níveis, não necessariamente bons. Na verdade, o que acontece com a nossa estrutura narrativa é o contato entre um jovem de classe média, branco, e esta vida e experiência do pobre trabalhador, com essa memória de mundo. Não podemos negar que grande parte do público do cinema do Brasil vem de camadas sociais mais parecidas com a do André. De certa maneira, teremos outro nível de identificação, com o espectador mais próximo do André do que do Cristiano. Este espectador vai ter uma sensação de descoberta e se inteirar mais sobre a vida de outra classe, de um lugar totalmente diferente do dele, que é o do Cristiano.
O protagonista passa por diversas situações, várias cidades, mas a condição de vida dele permanece ligada à precariedade. Isso me pareceu um irônico road movie da imobilidade social.
João Dumans: Essa é uma percepção interessante. Em geral, este é um road movie com pouquíssimas cenas de trânsito, pois temos uma estrutura de quadros. A essência do road movie é o deslocamento, colocando a mente dos personagens para girar junto com as paisagens.
No nosso caso, esse ar, digamos, "romântico" associado à questão da trajetória e do existencialismo não era o foco principal. Não sei se esses lugares são iguais. Há mudanças, transformações, mas são camadas se sedimentando. É um tipo de deslocamento diferente, em que cada lugar traz uma nova informação ou nova percepção. Talvez seja um road movie da sobreposição de coisas, como a escada que o personagem sobe para conseguir ver as coisas de cima. As coisas não ficam para trás, pelo contrário: elas vão se depositando mesmo, até permitirem uma visão da situação de cima.
Uma coisa que percebemos no filme é a estrutura cíclica de conquistas e retrocessos. Hoje, talvez o elemento mais assustador em relação ao nosso presente político e social seja esse caráter cíclico, a percepção de caminhar mas, na verdade, se ver no mesmo lugar de antes. A imobilidade se encontra nisso também.
Affonso Uchôa: Eu não diria imobilidade, pelo menos a minha relação com o filme não tem muito a ver com essa palavra. Os lugares são diferentes, mas a opressão é sempre a mesma. A gente pode inverter a frase e dizer: "A opressão é sempre a mesma, mas a vida é diferente em cada um desses lugares". A narrativa deixa um campo aberto para o espectador se colocar e mover as peças.
Inclusive, vivenciamos algumas situações engraçadas apresentando o filme. Algumas pessoas consideraram otimista, enquanto outros acharam super triste. Esse personagem tem um otimismo em sua base. Por que o Cristiano sempre continua? Por que não desiste? É porque, para ele, sempre valeu a pena continuar. Achar que vale a pena continuar, mesmo depois de tantos problemas, é algo de certa forma otimista mesmo. É a crença do poder da vida, da transformação, do caminho. É acreditar que o próximo passo pode ser melhor.
Nesse aspecto a gente se conecta com o road movie, no qual a estrada traz a ideia de que a próxima cidade pode ser interessante, pode valer a pena. Ao mesmo tempo, não dá pra negar que existe alguma coisa ali, no fim das contas, que reflete a paralisia que o João chamou de opressão. Aí se encontra um pouco do sentido político do filme. Nossa estrutura narrativa é fundada no movimento, mas o ponto de vista político visa marcar a imobilidade da História do Brasil em dois pontos centrais no filme.
Em primeiro lugar, quando a gente se conecta com Ouro Preto, a extração do ouro, a indústria poluidora e a construção da cidade industrial. É a vocação extrativista do Brasil: a gente continua fazendo a mesma coisa desde 1500, quando era colônia. Tiramos as coisas de debaixo da terra pra entregar aos gringos e fazer coisas mais caras. Ainda somos esse tipo de país, o que representa uma imobilidade, uma permanência que vem de muito tempo atrás e se torna uma essência negativa do Brasil.
A outra imobilidade é de situação social mesmo. Esses Cristianos sempre se ferraram, sempre foram a parcela excluída da sociedade, sempre foram aqueles que, seja qual for o ciclo no Brasil, na bonança ou na tempestade, ficam de fora. Par a gente, criar esse personagem para falar dos últimos 15 anos do Brasil é importante do ponto de vista político.
Esteticamente, vocês trabalham com planos fixos, contemplativos, ao invés do realismo bruto que acompanha personagens com a câmera na mão, por exemplo. A narração está muito mais presente que o diálogo.
João Dumans: Existe uma questão literária, em certo sentido, porque a gente não queria apresentar essa realidade de uma maneira crua. Isso implicava mudar a forma, o dispositivo e o jeito de filmar para tentar trazer a gravidade dos diálogos e situações. A ideia era tirar a crueza desse caráter mais direto, mais documental, e privilegiar uma abordagem com certa solenidade.
Isso tinha a ver também com os enquadramentos para a gente. Pensamos a realidade e a locação como se fosse um palco. Isso traz um caráter importante, meio teatral, com personagens encenando a si mesmos. Essas pessoas jogam com identidades e dramas próprios a eles. Existe um caráter lúdico no jeito de contar essa história. O filme é uma espécie de ruínas de um teatro do trabalho, ao invés de um filme realista ou neorrealista sobre a sociedade brasileira. Então tem música, diálogo solene, performance, piada.
É quase um show de variedades do trabalho à moda antiga, um teatro de revistas do trabalho. Poder jogar com esses elementos nos dá mais autonomia porque você não fica preso a certo retrato, representação ou lugar. A intenção é fazer dos atores e personagens os sujeitos da sua própria história, a ponto de poderem encená-la, torná-la viva no trabalho de representação dessas vidas.
Affonso Uchôa: Tem a questão do silêncio. Penso o silêncio como trabalho das ausências. O maior exemplo do nosso aprendizado com esse projeto foi a relação entre som e imagem. Aprendemos mesmo, errando bastante, reescrevendo e refazendo, pensando o som em off para tornar presente algumas ausências e não ser reiterativo em relação ao que a imagem está dizendo, ou apenas completando, e sim tornar essa relação entre texto e imagem criativa e potente. Na verdade, trabalhar com as ausências tem a ver com inventar um espaço para o espectador; criar no filme um momento com alguma coisa incompleta, que precisa necessariamente ser completada por quem está assistindo o filme.
João Dumans: Isso tem a ver com as diferentes interpretações do filme, seja otimista ou pessimista. Em certo sentido o filme ressoa muito do próprio estado de espírito da pessoa que está assistindo. Dependendo do que você está sentindo, pode considerar mais pessimista ou otimista.