Estreia nos cinemas esta quinta-feira o documentário Górgona, dirigido por Pedro Jezler e Fábio Furtado. Os cineastas acompanharam a montagem da peça "As Três Velhas", focando no trabalho da veterana atriz Maria Alice Vergueiro. Sem sair do espaço do teatro, eles captam os ensaios, as discussões, o processo de criação.
Aos poucos, o projeto discute a dificuldade de fazer teatro independente, enquanto registra o esforço de Maria Alice para continuar criando, apesar da idade e dos problemas de saúde.
O AdoroCinema conversou em exclusividade com os diretores sobre o projeto:
Vocês escolheram um recorte muito específico da vida de Maria Alice Vergueiro.
Pedro Jezler: O Fábio já trabalhava com a Maria, então tem uma observação anterior ao filme. Eles estavam fazendo essa peça com a Maria, "As Três Velhas", e estava difícil arranjar patrocínio. Em determinado momento, o Fábio pensou que a peça não ia acontecer. Inconformado, ele filmou o processo de ensaio, além de uma cena da peça. Levou o elenco para uma casinha meio abandonada e fez uma filmagem na intenção de registrar alguma coisa.
Então a peça aconteceu e esse projeto ficou obsoleto. Dois anos depois, o Fábio me mostrou o material, e imaginamos um documentário sobre esses atores. Esse era um material filmado para ser ficção, mas a maneira que eles se relacionavam com a câmera era bem interessante, e poderia ser explorada. O filme surgiu na urgência de salvar um projeto que estava naufragando, uma peça que não ia acontecer, e o impulso de resistir a esse fracasso. Isso se preserva no filme.
Fábio Furtado: Não é só salvar um processo, é salvar uma determinada maneira de fazer teatro. No caso daquelas pessoas, a Maria e o Luci [Luciano Chirolli], principalmente, tinha algo diferente de tudo que eu já tinha visto e feito no teatro.
Pedro Jezler: O objetivo desde o início era fazer um filme sobre atores. Durante o processo, a gente percebeu que a câmera se interessava de fato pela Maria Alice. Então, o filme foi organizado através disso.
Fábio Furtado: A gente chegou a pegar material de arquivo para olhar, buscamos fitas, fizemos filmagens externas, filmagem na casa da Maria, mas aos poucos olhávamos para aquilo e víamos que não era o foco.
Pedro Jezler: A gente entendeu o que não queria: falar sobre o passado, fazer perguntas para eles... O que interessa nesse filme é a passagem do tempo entre esses momentos que a gente filmou a Maria durante aquela peça. Essa visão foi confirmada na montagem do filme.
Fábio Furtado: Tem um procedimento que a gente adotou rigorosamente. A cada dia de filmagem, depois a gente se sentava e assistia ao que tinha sido feito. Então, era possível confirmar se aquilo tinha sentido para nós. Isso determinava a filmagem seguinte.
Pedro Jezler: Esse é um tipo de filme que não dá para inscrever em um edital de documentário, sabe? Você vai colocar o que lá? Que vamos andar atrás de uma pessoa? E depois existe uma quantidade de material difícil de colocar em edital de finalização.
Fábio Furtado: Como explicamos que a equipe vai acompanhar a personagem durante 5 anos, 6 anos? Como pagar por isso?
Muitas vezes, com uma equipe pequena, o diretor busca ter uma câmera invisível, num canto do cômodo, ou então ele explora a presença da câmera, fazendo entrevista e perguntas. Vocês evitam os dois caminhos. Como se dava a posição da câmera nesse espaço?
Fábio Furtado: A intimidade se estabeleceu muito rápido, porque a gente já se conhecia. Além disso, o tempo também nos ajuda. A gente filmou durante muito tempo: toda temporada tinha a câmera.
Pedro Jezler: O Fábio trabalha com a Maria há 10 anos, então chegamos com uma intimidade já conquistada. Mas a intimidade de filmá-la é diferente, e tem a questão de até onde filmar. Às vezes a gente estava filmando a Maria enquanto outras coisas aconteciam ao lado. Neste caso, a câmera não se virava, ela permanecia no quadro. Se fosse um outro tipo de documentário, isso seria uma loucura, mas a gente ia ali toda hora, filmava sempre. É um filme com poucos acontecimentos: nosso foco eram as pessoas mesmo. Então às vezes a gente sentava filmando a Maria Alice durante 20 minutos num plano em que nada acontece, e de repente ela fazia um gesto maravilhoso, cheio de sentidos. É um jeito impossível de filmar em um esquema industrial.
De que maneira a Maria Alice reagiu quando viu o material pronto?
Pedro Jezler: Ela ficou desconcertada na primeira sessão, mas depois foi ver o filme em todas as sessões. Quando ele passou na Mostra, ela não queria parar de ver. Então em cada uma das sessões ela teve um pedaço da experiência. Se ver retratado na frente de 300 pessoas, pela primeira vez, em um filme que lida com questões duras, é delicado. Até porque a gente foi bem longe. Existe uma cena em que os funcionários ajudam a Maria a subir as escadas. É o momento em que chegamos mais perto de expor algo muito íntimo.
Fábio Furtado: Não é um contrato explícito. Qual é o limite? Até onde você pode ir? Às vezes você sente que passou do limite e pode perder tudo. Tem que ter confiança, isso é fundamental. Se você tirar essa confiança das pessoas, acabou o filme.
Existe uma responsabilidade muito grande no retrato de pessoas de idade avançada, em fim de carreira.
Pedro Jezler: Os atores têm plena consciência de serem filmados o tempo todo. Tem muitas maneiras de definir o que é documentário, mas uma boa definição se encontra nessa fronteira ética. Você está filmando pessoas de verdade, e depois o que você faz com essas imagens vai recair sobre a pessoa real. Você tem que lidar com essa responsabilidade o tempo inteiro.
Fábio Furtado: A gente buscou retratar essa mulher na potência do seu momento, o que de alguma maneira representa tudo o que ela fez. O filme durou um tempo longo para os padrões, mas esses seis anos, para a Maria, são uma coisa muito diferente do que para os outros atores. A passagem de tempo para ela é crítica, e tínhamos óbvia consciência disso.
Pedro Jezler: Tem duas coisas importantes. Primeiro, a Maria Alice não é atriz de cinema, ela só fez um curta-metragem recentemente, e uma novela. Então ela diz que este é o primeiro longa-metragem dela. É uma atriz de teatro com uma carreira consagrada, respeitada, considerada uma das maiores atrizes do Brasil. Foram cinquenta anos de entrega radical ao teatro, de um tipo que interessa a pouca gente, difícil de viabilizar. Mas tudo isso é teatro. Tudo isso vai desaparecer com o tempo. Mas o filme vai se tornar um registro no fim das contas, pelo simples fato de ser um filme.
Segundo, durante a montagem eu tinha sensação de fazer um testamento dela. Os montadores também se comoviam, choravam na ilha de edição. Desenvolveram uma relação de afeto intenso por uma pessoa que nunca conheceram pessoalmente. Isso acontece nesses processos longos de montagem. Você passa muito tempo olhando para os olhos de uma pessoa; ela não te conhece mas você a conhece muito bem. Esse sentimento faz parte do filme. Fico muito feliz que a Maria possa ter visto o filme dela na Mostra, e agora em cartaz.
Fábio Furtado: É fundamental que não seja um filme póstumo. Também tem algo particular à natureza do retrato. Existe algo meio mórbido sempre, não só porque ela tem 83 anos, mas quando você retrata alguém, é porque sabe que está morrendo. Essa pessoa vai embora um dia, e tem uma coisa que você quer preservar.
Pedro Jezler: A gente sempre pensou nesse filme como um retrato filmado. Eu pensava na fotografia de rua, porque o filme é um pouco assim, só que em internas. Você percorre aquele espaço com a câmera, recupera a sensação da câmera de rua. Para mim, mais do que nunca, ele parece um retrato filmado.