Um desconforto existencialista permeia cada frame de Zama, primeiro longa-metragem dramático da cineasta argentina Lucrecia Martel desde A Mulher Sem Cabeça, lançado em 2008. Depois de passar pelos festivais de Veneza, Toronto e Nova York, o filme chega ao circuito brasileiro de estreias nesta quinta-feira (29) impulsionado por críticas positivas que celebram a obra como um dos mais ousados trabalhos de uma diretora sem par no cinema latino-americano.
A gênese do projeto remonta a uma viagem de barco que a realizadora fez pelo rio Paraná em 2010, quando se encantou com o romance Zama, publicado pelo autor argentino Antonio Di Benedetto em 1956. O impacto da obra vida na cineasta foi tão grande que ela ainda digere seus significados. "Quando eu terminei de ler, fiquei muito feliz porque eu tive a impressão de que eu entendi alguma coisa que na verdade até agora eu nem sei do que se trata", comentou Martel em entrevista para o AdoroCinema.
O ator hispano-mexixano Daniel Giménez Cacho interpreta Don Diego de Zama, um oficial à serviço do rei da Espanha instalado em uma colônia do Paraguai no final do século XVIII. Envolto em um cenário que parece repeli-lo, Diego se sente ostracizado por estar situado em um local sem prestígio no qual seu status como autoridade é constantemente colocado em choque com sua irrelevância naquele ambiente. Com esta premissa, Martel desenvolve um comentário iconoclasta sobre figuras que a história oficial costuma pintar como heróis quando assunto são os conquistadores europeus no Novo Mundo.
Com uma fotografia inspirada assinada pelo português Rui Poças, o filme usa a exuberância da paisagem da região do Gran Chaco argentino para conferir um aspecto quase surrealista e onírico na narrativa, marcada pelo sentimento de espera e pela angústia do protagonista. Don Diego de Zama quer mudar de vida, mas esbarra na burocracia e não tem muitas opções diante de si para mudar seu próprio destino.
Antes de adpatar o livro de Di Benedetto para os cinemas, Martel, que até então só tinha dirigido longas com roteiros originais assinados por ela mesma, pensou em adaptar as HQs de ficção científica da série O Eternauta. As revistas em quadrinhos escritas por Héctor Germán Oesterheld com arte de Francisco Solano López são um marco na cultura pop argentina, mas o projeto não foi para a frente. Entretanto, de O Eternauta para Zama permaneceu o desejo de explorar uma atmosfera mais especulativa e criativa em seu trabalho recente. "É muito importante fazer filmes históricos mas com liberdade, filmes um pouco mais parecidos com a ficção científica", disse a realizadora.
Encabeçado por Giménez Chacho, o elenco de Zama também conta com a espanhola Lola Dueñas — que já trabalhou diversas vezes com Pedro Almodóvar, um dos produtores do filme — e com o brasileiro Matheus Nachtergaele, que interpreta um papel fundamental na trama, um "um personagem meio fantasma", nas palavras da diretora.
Abaixo, leia a entrevista do AdoroCinema com a diretora Lucrecia Martel.
Como foi o seu contato com o livro no qual o filme se baseia e o que mais te chamou atenção na obra de Antonio Di Benedetto?
Lucrecia Martel: Eu não conheço toda a obra de Antonio Di Benedetto. Só conheço o próprio livro Zama e alguns contos. Eu entrei em contato com a obra dele em 2005, quando uma amiga minha me deu o livro, mas eu só fui lê-lo realmente em 2010. Quando eu terminei de ler, fiquei muito feliz porque eu tive a impressão de que eu entendi alguma coisa que na verdade até agora eu nem sei do que se trata. Mas eu tinha uma certeza de que eu podia realmente tentar entender isso de alguma maneira usando o audiovisual e que isso seria muito bom. Para mim, né? Não sei para os outros.
Uma das coisas que mais chama a atenção na ficha técnica do filme é o número de produtores. São quase 30 pessoas creditadas na produção ou coprodução. Como isso impactou o filme e quais foram os maiores desafios para financiar o projeto?
O fato de ter tantos produtores já é um sintoma do problema que é conseguir dinheiro para fazer um filme com esse tipo de ambição. É um tipo de cinema em que os produtores não impõem nada narrativamente, mas deixam o diretor trabalhar tranquilamente. Por isso não é fácil encontrar três pessoas com muito dinheiro e que pensam dessa maneira, mas é relativamente mais fácil encontrar 30, com menos dinheiro, mas que pensem dessa forma.
Um desses produtores é o Pedro Almodóvar.
Ele já produziu três filmes meus. A El Deseo [produtora de Pedro e Agustín Almodóvar] é uma produtora até pequena se comparada a outras, segue o espírito de apoiar o diretor e não teve nenhuma intenção de influenciar para modificar nada em Zama. Na verdade, toda produtora ou empresa que já trabalha com esse tipo de filme de autor, com esse tipo de produção, sempre tem bons conselhos para lidar com o negócio, com a parte de comercial e distribuição.
Zama trata do colonialismo por uma perspectiva iconoclasta. Para você, a América Latina precisa questionar figuras que a história oficial definiu como herói?
Eu penso que a nossa história foi tão manipulada por tanta gente, por quem escreveu a história oficial, e por isso é muito importante fazer filmes históricos mas com liberdade, filmes um pouco mais parecidos com a ficção científica.
A burocracia da colônia é apresentada no filme como uma questão central da trama. Don Diego de Zama esta sempre a espera de uma resposta. Qual comentário você quis fazer no filme sobre este ato de esperar?
O que mais me interessava era pensar no tema da identidade. A ideia que fazemos de nós mesmos e o que achamos que merecemos gera uma armadilha. Esse poder da burocracia ou essa espera que Don Diego de Zama experimentou só acontece quando alguém acredita em um poder muito definido que não se pode modificar e quando temos uma imagem muito fechada de nós mesmos.
Existe uma relação entre esse ato de esperar com a formação judaico-cristã da América Latina? De esperar por uma redenção?
Sem dúvida. Isso é o que fizemos no filme. E, nesse sentido, o romance e o filme Zama apresentam uma reflexão mais existencial e politicamente mais relacionada com o existencialismo.
Na sua visão, quais resquícios daquela colônia remota do século XVIII permanecem na estrutura social da América Latina, seja no Brasil, seja na Argentina ou no Paraguai?
Nós da América Latina vivemos com a fantasia de que a colônia foi a época da exclusão, da escravidão, dos massacres indígenas. E aí depois com a independência e começou a felicidade, os heróis com as suas bandeiras para nos redimir. Mas a verdade é que a exclusão dos povos indígenas é igual, a humilhação e desprezo pela cultura negra continua, a escravidão é muito presente na América Latina… São muitas coisas e a gente acaba deixando de ligar para isso nos dias de hoje. O discurso nacionalista acaba encobrindo tudo isso que ainda persiste. Tudo isso que se fala de democracia racial, de que "somos todos argentinos", que é uma coisa que se diz muito na Argentina, é uma falácia.
Lá na Argentina estão usando o exército para reprimir a população indígena e a mesma coisa tem acontecido aqui no Brasil, que está usando o exército para manter subjugada a população das comunidades, majoritariamente pobre e negra. Ou seja, seguimos submentendo uma violência tremenda contra uma parte importantíssima da sociedade.
A personagem que é a mãe do filho de Don Diego de Zama foi interpretada por uma atriz não profissional que é indígena. Como foi esse diálogo com ela?
Foi muito interessante. Ela é uma índia guarani, e é uma princesa [María é filha de um pajé da província de Misiones] que trata a todos os outros como súditos. Nesse momento a situação inverteu.
Matheus Nachtergaele tem um papel muito importante no filme. Como foi trabalhar com ele e como foi esse diálogo de talentos brasileiros e argentinos?
Uma coisa que eu me orgulho é que esse filme não foi uma coprodução só por necessidade de financiamento, mas era uma necessidade da própria narrativa, de contar com o suporte brasileiro, com a criatividade do brasileiro e com o talento brasileiro no filme. E eu acho que isso está bem claro no filme. E a figura do Matheus é muito interessante, porque na primeira parte do filme, ele é um personagem meio fantasma e depois ele vem e encarna esse fantasma de uma maneira incrível. Foi muito bom, eu fiquei muito feliz com a participação dele e de trabalhar com ele. Eu fico até com inveja do Brasil.
Em Zama a paisagem tem uma força visual muito grande e a paisagem é muito importante para o contexto da história, e também para o sentimento de mal-estar que permeia a obra. Como foi a experiência de rodar naquelas locações?
As locações foram na região do Gran Chaco, um território parte argentino, parte boliviano, parte paraguaio e também parte brasileiro. Eu estive gravando na parte argentina. É um local muito difícil de gravar, mas eu tinha muita vontade de usar essa locação, porque ela é um dos últimos símbolos da resistência indígena na Argentina.
Como foi sua colaboração com o diretor de fotografia português Rui Poças?
Rui Poças é uma pessoa ideal para trabalhar, porque ele é uma pessoa muito bem humorada, divertida, uma pessoa muito boa para estar perto. E o meu trabalho com ele foi tentar fugir de imagens apelativas que se usam muito em filmes históricos, como usar a vela para remeter ao passado.
E o trabalho de som do filme? A minha percepção foi de que o trabalho de som ajudou a criar uma atmosfera bastante perturbadora em alguns instantes e até um certo discurso a parte da imagem…
A ideia é construir um volume sonoro para que o espectador seja completamente imerso e pudesse estar ali nesse ambiente.
O filme tem uma característica curiosa que é não mostrar símbolos religiosos, como crucifixos e outras coisas que se referem à Igreja Católica
A ideia era tirar um pouco da religião para dar mais enfoque no civil, porque o que acontece quando você usa esse lado religioso você acaba indo para o artifício do fogo e da vela. E você tira o foco do que está acontecendo no mundo civil.