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    "Tinha que ser um filme tropicalista", afirmam os diretores de Torquato Neto - Todas as Horas do Fim (Exclusivo)

    Conversamos com Eduardo Ades e Marcus Fernando sobre o excelente documentário que estreia hoje nos cinemas.

    Paula Ferraz / Sinny Assessoria

    Quando falamos em Tropicália, você pensa em Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil? Vale lembrar também a presença de um dos grandes compositores e poetas do grupo: Torquato Neto.

    No documentário Torquato Neto - Todas as Horas do Fim, em cartaz no cinema, os diretores Eduardo AdesMarcus Fernando relembram a trajetória do artista, cujos poemas são lidos por Jesuíta Barbosa.

    O ótimo resultado se deve à ousadia dos cineastas, que utilizam imagens do Cinema Marginal para ilustrar a trajetória excepcional de Torquato. Leia a nossa conversa com os diretores:

    Torquato é pouco conhecido entre os nomes da Tropicália. Como vocês explicam esse papel de marginal entre os marginais?

    Marcus Fernando: Ele era só um letrista, não tinha uma atuação artística de palco. Inclusive, todo mundo que ouviu ele cantar disse que era uma coisa horrorosa. Parecia uma tentativa desesperada de se encaixar em algo que todos os outros se encaixavam: Tom Zé gravando, Gil e Caetano fazendo discos, shows, etc. A gente tem fotos dele no palco sendo acompanhado por músicos, mas o próprio cunhado dele disse que ele era um desastre cantando. Tom Zé disse que conheceu poucas pessoas na vida que não conseguiam nem entoar, nem cantarolar uma música, e o Torquato era uma delas. Enfim, ele não tinha essa possibilidade de aparecer. 

    A Tropicália hoje é normalmente associada a Caetano, Gil e Tom Zé. São figuras que ficaram até hoje. Mas a gente tem o Torquato e o Rogério Duarte, que foram fundamentais nesse processo. O Gil diz isso na entrevista pra gente: "Eu queria saber de música, esse negócio de pensar isso é coisa de Torquato, Rogério e Caetano. Eu tava ligado na música". 

    Eduardo Ades: Ele era poeta e letrista, não estava na linha de frente. Além disso, morreu cedo. Ele não teve tempo de publicar seu próprio livro em vida, nem de defender, digamos, o próprio legado. Se ele continuasse aparecendo com outras obras, pensaríamos "Esse é o Torquato que veio lá da Tropicália". Mas ele parou ali. Os companheiros citam Torquato, mas não é o suficiente. A morte precoce colabora para esse esquecimento.

    O filme se dedica bastante ao suicídio do Torquato Neto.

    Marcus Fernando: A gente abre o filme contando que ele se matou. Mas a gente decidiu que, primeiro, não ia buscar nenhuma explicação para esse suicídio. Segundo, não ia tratar isso como um grande momento do filme, e nem seria a conclusão. A ideia não era chegar nisso. O espectador recebe o aviso: "Olha, para você que não sabe nada desse sujeito, a primeira coisa que você vai saber é que ele se matou". É claro que o espectador pode pensar sobre as razões, e muita gente fala da angústia dele. Isso está na poesia do Torquato.

    Eduardo Ades: O filme inteiro aborda a noção de morte, que esteve presente em toda a vida dele. No poema da juventude dele, ele fala: "Minha mãe quase que morre, quase que eu morro". Torquato já nasce com a marca da morte, o nascimento dele é uma quase morte. Isso foi formulado quando ele tinha apenas 15, 16 anos. A noção da morte acompanha a vida dele inteira de formas diversas, além da morte física. 

    Uma pessoa pode se matar de diversas formas: matar aquele filho querido, o filho único mimado pelos pais, matar a carreira quando ele se consolida como um grande poeta, compositor da MPB, e depois embarca na Tropicália. Ele mata aquele poeta mais lírico para criar letras fragmentadas. Ele está sempre se matando de várias formas, artisticamente, até das ligações afetivas. A Tropicália é uma ruptura não só estética, mas afetiva também. Ele deixa o Chico, o Edu Lobo, e de repente ele vai para outro lado, com o Caetano e o Gil.

    Marcus Fernando: A gente tenta fazer jus ao poema que abre o filme em que ele diz que vive tranquilamente em todas as horas do fim. Decidimos tratar tranquilamente a vida dele. 

    Vocês fazem um trabalho impressionante com as imagens do cinema marginal para ilustrar a vida do Torquato.

    Eduardo Ades: A ideia de usar os filmes [do cinema marginal] vem da falta de materiais. Optamos por tratar Torquato como protagonista, ao invés de assunto. Esta é uma opção que vem desde o início: escolhemos entrevistar apenas pessoas que conheceram ele, ao invés de pesquisadores, professores, musicólogos. Só mostramos gente que conheceu Torquato, conviveu com ele, e pode falar em primeira pessoa. Mas é curioso essas pessoas aparecerem falando, porque o Torquato não tem esse tipo de material. 

    Marcus Fernando: O único registro sonoro encontrado dele ao longo do processo veio de um radialista, e a gente tem imagem sem som dos filmes do Super 8. Ou seja, não temos imagens e sons juntos, mas tínhamos isso no caso dos entrevistados. Começamos a pensar: "Essas pessoas estão ganhando do Torquato". Elas são coadjuvantes, mas quando aparecem, o Torquato começa a virar assunto. Então, como o Torquato é protagonista a aparece com o som separado da imagem, as pessoas também vão aparecer da mesma maneira. Começamos então a criar essas brincadeiras, esses jogos de sobreposição de imagens. Assim não fica uma coisa ilustrativa.

    A gente reimagina o Torquato em vários personagens diferentes. Resulta nessa coisa meio fantasmática, fantasmagórica. Ele foi também um Nosferatu, aquele morto-vivo, o cara que vive eternamente e não morre. O filme traz essa sensação inapreensível, ele tem uma força muito maior do que a gente conseguiria colocar. É melhor adotar o formato mais livre mesmo.

    Exatamente. Muitos documentários falam sobre pessoas ousadas com uma linguagem bastante convencional, o que não é o caso do filme de vocês.

    Marcus Fernando: Quando eu procurei o Eduardo, disse: "Esse filme não pode ser careta, ele tem que ser tropicalista". Para mim, o filme pra mim é totalmente tropicalista. Essa coisa de desencontro de imagem e som, com o Torquato falando sobre andar pra frente enquanto vemos o velhinho de Terra em Transe sambando é um bom exemplo. Para mim, aquilo é uma estética tropicalista. A gente sabia que estava lidando com um personagem que não poderia ser tratado de forma convencional.

    Como escolheram o Jesuíta Barbosa para declamar os poemas? De que modo ele foi dirigido?

    Marcus Fernando: A gente sabia que o Torquato precisaria falar ao longo do filme inteiro, porque ele era o protagonista. Ao longo da montagem, fizemos uma seleção prévia de textos e eventualmente tiramos um ou outro, fizemos substituições. Mas não quisemos pedir aos entrevistados para lerem um poema que gostassem. A intenção era construir esse personagem. Quando começamos a pensar em faria a voz, cogitamos atores experientes, bons locutores. Mas percebemos que o Torquato não fazia este tipo de poesia. Não é poesia que exige boa impostação, boa dicção.

    Eduardo Ades: As obras dele têm níveis de emoção completamente diferentes: tem agressividade, ironia, sarcasmo, deboche, tristeza. A gente precisava de alguém com versatilidade.

    Marcus Fernando: Então veio essa ideia do Jesuíta, que a gente acompanhava há um tempo. Ele é nordestino, como o Torquato, e tem uma idade próxima dele quando morreu. Além disso, possui muitos recursos dramáticos. Ele faz personagens absolutamente diferentes, com grande dedicação. Não foi diferente com a gente no estúdio. Conversamos muito sobre o tom de cada poema, de cada carta, de cada leitura.

    Eduardo Ades: Algumas leituras precisavam ser mais marcadas, então ele se tornava mais agressivo. Em outras era possível ser mais coloquial... Fomos procurando o tom de cada texto. Às vezes o Jesuíta sugeria algo que a gente nem sabia que estava procurando.

    Qual é o peso político de lançar Torquato Neto - Todas as Horas do Fim no Brasil atual?

    Marcus Fernando: Três anos atrás, quando tudo começou, a gente nem poderia imaginar que estivéssemos nesse momento. Mas muitas pessoas saíram das sessões nos festivais e pré-estreias dizendo que é importante lançar este filme agora, resgatar o trabalho do Torquato num período em que este discurso é necessário. É um ganho para o filme.

    Eduardo Ades: O que o Torquato traz, o contexto da época, está muito evidente pelos filmes que a gente utiliza. Algumas pessoas imaginam o que foi aquele momento de AI-5, de repressão, um momento de asfixia. O Torquato procurava brechas, pontos da poesia, de transgressão. Ele sempre fez um trabalho de ruptura, encontrando e ocupando novos espaços. "Acredite na poesia e viva", ele falava. Esta é uma marca forte colocada pelo Torquato.

     

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