Ele é dotado de um forte senso de propósito, usa as virtudes e firmeza moral que tem para encarar os males de seu tempo e celebrar sua comunidade, sabe encontrar o balanço entre fúria e a inteligência e é uma referência atual na cultura pop. Tal descrição poderia definir a personalidade T'Challa, o Pantera Negra interpretado por Chadwick Boseman no 18º filme do Universo Cinematográfico Marvel (MCU, na sigla em inglês), mas tais palavras também podem se referir ao rapper Kendrick Lamar.
Com Barack Obama entre seus maiores fãs, mais de uma dezena de prêmios no Grammy e aclamação entre a imprensa especializada, Lamar cruzou sua prestigiosa trajetória com a da Marvel Studios em um projeto que já nasce fazendo história. Após 10 anos e quase 20 filmes sobre protagonistas brancos, a maior franquia de todos os tempos lançou em 2018 o seu primeiro filme dedicado a um herói negro, dirigido e roteirizado por cineastas negros e com um elenco principal formado quase totalmente por atores afro-americanos. Assim como aconteceu com Mulher-Maravilha, a estreia do filme foi recebida com empolgação por fãs que sempre quiseram se ver representados em blockbusters de tal magnitude.
A produção com características sem precedentes no MCU ganhou uma trilha sonora igualmente marcante. Uma semana antes de Pantera Negra chegar aos cinemas foi lançado o disco Black Panther: The Album – Music from and Inspired By, obra que traz canções que constam na trilha sonora do filme e faixas inspiradas na jornada de T'Challa para assumir o trono de Wakanda. O álbum conta com Lamar como produtor executivo e curador — funções que divide com Anthony Tiffith, fundador da gravadora Top Dawg Entertainment (TDE). O rapper mais celebrado de sua geração também compôs e performou em diversas faixas do disco, que é repleto de participações especiais. SZA, Future, The Weeknd, Schoolboy Q, 2 Chainz e James Blake são alguns dos nomes mais conhecidos da ficha técnica, que conta ainda com artistas negros dos Estados Unidos, África do Sul, Etiópia, Canadá e Reino Unido.
Discos do tipo não são uma novidade no Universo Marvel. Os Vingadores - The Avengers (2012) rendeu o álbum Avengers Assemble (Music from and Inspired by the Motion Picture), que tinha o single "Live to Rise", do Soundgarden, como carro chefe. Homem de Ferro 3 (2013) inspirou o disco Iron Man 3: Heroes Fall (Music Inspired by the Motion Picture), com canções de Imagine Dragons e outros artistas. Esquecíveis e repletas de canções insípidas, as duas investidas tiveram um impacto cultural basicamente nulo a longo prazo. Com curadoria do diretor James Gunn, os dois volumes de Guardiões da Galáxia contaram com trilhas sonoras perfeitas para a proposta nostálgica das aventuras espaciais do Senhor das Estrelas e companhia. Os dois filmes renderam momentos musicais inesquecíveis para o MCU, mas, diferente do que acontece em Pantera Negra, as canções não foram escritas especificamente para o contexto daquelas cenas.
O cineasta Ryan Coogler, nascido e criado no estado da Califórnia assim como Lamar, foi quem escolheu o rapper para ajudar a criar a identidade musical do longa-metragem. "Me sinto honrado de trabalhar com um artista incrível cujo trabalho é tão inspirador e cujos temas artísticos se alinham com os temas que nós exploramos no filme", declarou o diretor quando a parceria foi anunciada para a imprensa.
No filme mais político da Marvel Studios até então, Coogler revisitou o personagem criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1966 — meses antes da fundação do Partido dos Panteras Negras — que até hoje permance como um marco nas HQs. Além de compartilharem do mesmo nome, o herói e o movimento político são frutos de um cenário em que a comunidade afro-americana reivindicava mais direitos em um contexto de opressão e leis segregacionistas.
Em um momento em que ideias de supremacia branca voltam a ganhar força nos Estados Unidos, o filme tem em Black Panther: The Album uma obra paralela que ecoa as mesmas ansiedades que eclodem na sociedade hoje. E qual seria a melhor maneira de retratar musicalmente tais questões se não a partir do hip hop, gênero musical que nasce e se desenvolve em comunidades negras de baixa renda e, apesar de também explorar outros temas, está associado a críticas e crônicas sociais.
Além disso, na Hollywood pós-#OscarsSoWhite, sucessos recentes como a vitória de Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) no Oscar, o ótimo resultado comercial da comédia Viagem das Garotas (2017) nos Estados Unidos e todos os recordes quebrados pelo terror que satiriza o racismo Corra! (2017), que fez história ao ser indicado ao Oscar em 2018, são apenas alguns exemplos de que o público está ávido por mais histórias protagonizadas e criadas por pessoas negras em todos os gêneros.
A origem do projeto
"Eu sou um grande fã do Kendrick desde a primeira vez que eu o escutei, desde suas mixtapes, e eu tenho tentado ir atrás dele", disse Coogler em entrevista para a NPR. "Nós nos encontramos há alguns anos e conversamos sobre como a música dele tinha me afetado. Ele falou sobre os meus filmes que ele tinha assistido e dissemos que adoraríamos trabalhar juntos se a oportunidade aparecesse".
Anos depois da conversa, o cineasta responsável por Fruitvale Station - A Última Parada (2013) e Creed: Nascido Para Lutar (2015) se reencontrou com o rapper em 2017 depois que o artista finalizou DAMN., seu aclamado quarto álbum de estúdio. Inicialmente, a intenção era que Kendrick escrevesse "apenas algumas canções" para o longa-metragem, proposta que contava com o apoio da Marvel. Entretanto, quando Coogler mostrou cenas do filme para o artista, surgiu o conceito de produzir um álbum inteiro, com 50 minutos de duração, sobre Pantera Negra.
"A magnitude desse filme exibe um grande casamento entre a arte e a cultura. Eu me sinto muito honrado em contribuir com meus conhecimentos de produtor e compositor para a visão de Ryan e da Marvel", declarou Lamar em um comunicado oficial que anunciou a parceria.
O produtor Sounwave, que trabalha para a Top Dawg Entertainment e tem créditos em quase todas as músicas de Black Panther: The Album, disse que boa parte do processo de criação do disco se deu enquanto ele e Lamar estavam na estrada promovendo DAMN. na turnê do elogiado álbum. "Durante a turnê nós provavelmente criamos 50% do disco em termos de produção, ideias e ganchos", comentou Sounwave, nome artístico de Mark Spears, também para a NPR. "Quando nós voltamos da turnê, em setembro [de 2017], foi quando nós fomos capazes de executar nossa ideias e contatar as pessoas que respeitamos", disse. O produtor ainda afirmou que considera que as canções que ajudou a criar tem o tom que o filme precisa. "Eu acho que foi a coisa certa a fazer. O filme não se passa em 1910 ou em 1960, quando Pantera Negra foi criado — se passa nos dias atuais. Há momentos com coisas atuais acontecendo no filme, então nós queríamos que toda a trilha sonora soasse atual. Eu acho que foi um casamento perfeito para misturar os dois mundos."
Rei T'Challa via King Kendick
Parecerias entre artistas relacionados à música negra e filmes estrelados por atores negros tem um longo histórico em Hollywood. Talvez a primeira era de ouro das trilhas sonoras de black music tenham sido os anos da blaxploitation, na década de 1970, quando diretores e atores negros criaram suas próprias histórias nas quais eram protagonistas de dramas policiais urbanos. Tais produções ganharam trilhas antológicas compostas por estrelas da soul music. Os exemplos mais notáveis são Shaft (de 1971, com trilha de Isaac Hayes), Super Fly (de 1972, com trilha de Curtis Mayfield), A Máfia Nunca Perdoa (de 1972, com trilha de Bobby Womack e J. J. Johnson), O Terrível Mister T (de 1972, com trilha de Marvin Gaye) e O Chefão de Nova York (de 1973, com trilha de James Brown).
Décadas depois, com a ascensão do hip hop como uma força cultural que parte dos Estados Unidos para o mundo, a tradição se manteve. Ao invés dos eforços de artistas solo, surgem mais álbums colaborativos que trazem faixas inspiradas nos temas de um filme. Alguns exemplos dessa tendência que aflora na década de 1990 são O Lance do Crime (1994) e Juice - Uma Questão de Respeito (1992), ambos estrelados pelo rapper Tupac Shakur; e Sexta-Feira em Apuros (1995) e Os Donos da Rua (1991), protagonizados pelo rapper Ice Cube. Em entrevista para a o site FACT, Coogler disse que sua referência para o projeto Black Panther: The Album foram justamente os discos dos anos 90. "Muitos dos artistas [no álbum] são pessoas com quem ele [Kendrick Lamar] já tem alguma afinidade e com quem ele se relaciona", comentou o cineasta, que também disse que ficou surpreso quando percebeu que o rapper soube magnetizar tantos talentos para o álbum. "Quando eu vi a lista final foi impressionante, cara."
Ao assistir Pantera Negra, salta aos olhos a reverência e a reponsabilidade com a qual Coogler e sua equipe desenvolveram o aguardado longa-metragem, descrito pelo cineasta como "uma exploração do que significa ser africano". Da riqueza dos figurinos, penteados e ambientes aos sotaques dos povos de Wakanda— que também carregam significados políticos —, cada detalhes do longa-metragem deixa claro que este é um filme feito para celebrar sem ressalvas a beleza, a auto-estima e o valor de um grupo que já foi alvo de tantos estereótipos negativos no cinema. Assim, Black Panther: The Album é mais um sinal da ambição do projeto de escancarar sua relevância, política, artística e estética, para os dias de hoje.
Boseman vive um T'Challa que precisa encarar seu destino em Wakanda, isolada nação africana que traz uma fortuna inestimável em reservas naturais de vibranium, um metal raro, precioso e cobiçado. Após a morte do rei T'Chaka (John Kani) em Capitão América: Guerra Civil (2016), T'Challa precisa voltar para seu país de origem e assumir o trono de seu pai e o traje de Pantera Negra. A jornada do herói no filme é marcada por temas que também orientaram os trabalhos mais recentes de Kendrick Lamar: dúvida, espiritualidade, as armadilhas do status e do poder e, é claro, as questões raciais.
Oficialmente creditado como performer em cinco das 14 canções, Lamar atuou como compositor de todas elas, além de seu trabalho como curador e de participações vocais não creditadas. O resultado é um disco que até tem seus altos e baixos por conta de seu caráter colaborativo, mas é tenaz e satisfatoriamente coeso o suficiente para se destacar por méritos próprios. Como em DAMN., a questão da dualidade se manifesta em Kendrick quando ele assume em seus versos tanto a personalidade de T'Challa quanto a do vilão Erik Killmonger, vivido por Michael B. Jordan, constante colaborador de Coogler.
O rapper se sai bem na pele de ambos por conta de sua própria trajetória artística. O artista definiu seu penúltimo álbum, o jazzístico To Pimp a Butterfly (2015), como uma parábola sobre liderença, principal dilema que cerca o herdeiro do trono de Wakanda. O conceitual Good Kid, M.A.A.D City (2013), por sua vez, é uma análise autobiográfica dos efeitos da violência urbana e pobreza na vida de um jovem afro-americano da periferia, algo que se relaciona com as motivações de Killmonger para tentar usurpar o trono de T'Challa. Entretanto, apesar de entregar alguns de seus melhores versos quando se propõe a interpretar o herói e o antagonista do filme com suas rimas, Lamar recorre a recursos um tanto óbvios para pontuar as mudanças de identidade, como literalmente dizer "Eu sou T'Challa" ou "Eu sou Killmonger".
Outras canções, como a balada com toques de R&B contemporâneo "The Ways", se encaixam na trama do filme mesmo sem forçar conexões. Em "The Ways", o indicado ao Grammy de artista revelação Khalid faz um dueto com os lamentos em auto-tune de Swae Lee (do duo Rae Sremmurd), em uma faixa que pode ser imaginada como uma expressão do lado romântico de T'Challa, que no filme guarda sentimentos por sua ex-namorada, a espiã Nakia, interpretada por Lupita Nyong'o.
A liberdade criativa que a Marvel Studios, que é subsidiária de uma das companhia mais family friendly do mundo, a Disney, em relação ao processo de produção do disco fica evidente logo na primeira audição. Palavrões e menções a drogas não foram censuradas no disco — felizmente. Um possível moralismo da Disney nesse sentido certamente prejudicaria prejudicar a integridade da obra.
Os veteranos, como Lamar, se destacam, é claro — ScHoolboy Q e 2 Chainz brilham em "X" — , mas alguns dos nomes menos conhecidos roubam a cena quando tomam conta dos microfones. É o caso da provocativa faixa "Paramedic!", assinada pelo coletivo SOB x RBE, que versa sobre a disputa de poder em um gueto dominado por gangues e mais uma vez apresenta Killmonger como eu-lírico. Com uma vibe bem distinta, a meditativa "Seasons", parceria dos rappers americanos Mozzy e Reason com cantor sulafricano Sjava, que trata de forma melancólica sobre os desafios de viver cercado por violência e falta de oportunidades.
Na próxima página, vamos dissecar cinco canções essenciais de Black Panther: The Album e a ligação delas com os eventos de Pantera Negra, incluindo os singles "All The Stars", "Pray For Me" e "King's Dead".