Se o Festival de Brasília 2017 ficou marcado pelos conflitos em torno de Vazante, com acusações de racismo ao novo filme dirigido por Daniela Thomas que fizeram com que ela até mesmo dissesse que não deveria tê-lo feito - e, posteriormente, voltando atrás nesta declaração -, fato é que um pequeno filme baiano despontou neste mesmo festival, em parte graças a este mesmo conflito. Seu nome, Café com Canela.
Exibido exatamente um dia após Vazante, o filme de estreia dos diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio foi ovacionado pelo público - não por acaso, levou o prêmio de melhor filme segundo o júri popular -, justamente pelas características diametralmente opostas às do longa de Daniela Thomas. Protagonizado por atores negros e sem se ater a questões sociais ou raciais, o filme apresenta um espirituoso retrato cotidiano no Recôncavo Baiano, nas cidades de Cachoeira e São Félix. Como poucas vezes se viu no cinema brasileiro, o negro enfim ganhava voz como cidadão pleno, sem qualquer amarra acerca de questões históricas ou sua posição na sociedade. Mais ainda: Glenda Nicácio se afirmava como uma das poucas diretoras negras em atividade.
Se tamanha exaltação é compreensível diante do cenário de momento, com Café com Canela de imediato assumindo involuntariamente a posição de ser uma espécie de "anti-Vazante", a ânsia por justiça social também nas telonas tupiniquins provocou uma contradição: por mais que tenha diálogos divertidos e bons personagens - Babu Santana e Arlete Dias, especialmente -, Café com Canela traz problemas típicos de um primeiro longa, com excessos escancarados resultantes de uma ânsia em fazer tudo ao mesmo tempo agora. Tal postura, como ressalta a crítica do AdoroCinema, faz com que o filme "banalize o risco", devido às inconstâncias técnicas e narrativas. Ou seja, a bandeira política que se tornou batia de frente com a qualidade do próprio filme.
Cinco meses depois, Café com Canela foi escolhido para abrir a 21ª Mostra de Tiradentes, como parte da homenagem ao ator Babu Santana. "Filhos de Tiradentes", já que por anos vieram ao festival antes de se aventurar em seu primeiro longa-metragem, os diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio marcaram presença e, é claro, comentaram sobre esta trajetória.
"Café com Canela era uma história que eu e Glenda queríamos contar", explicou Ary Rosa. "Não fazia sentido contar uma história situada entre Cachoeira e São Félix estrelada por brancos, pois é uma cidade negra. Era uma questão de identidade, mas isto acabou se tornando uma ação política. Hoje, no Brasil, apenas 4% dos filmes feitos foram estrelados por mulheres negras, em um país onde há uma porcentagem muito maior que isso. Então, como representação, Café com Canela é algo muito importante."
"Filmes que trazem bandeiras políticas mais definidas são muito importantes também, mas o Café com Canela optou por não [trazer]", complementou o diretor. "Queríamos contar uma história e acabamos tendo este impacto político. Ficamos bastante surpresos com esta repercussão, em como o audiovisual é carente de uma representação dos negros e, imagino, de outras minorias também."
"É preciso refletir sobre isso. Muito desta euforia sobre Café com Canela é justamente por uma representação e uma formação por questões de identidade, que até então eram negadas", afirmou a diretora Glenda Nicácio. "Um grande passo é a gente conseguir trazer estas crônicas cotidianas pro afeto, e dar uma liberdade pros artistas em geral de que podemos fazer arte falando de afeto e amor, outras coisas além de temas ligados ao social. Porque também parece que às vezes vira uma prisão, é sempre preciso falar destes assuntos."
Ainda sem previsão de estreia no circuito comercial, Café com Canela inicia agora sua trajetória internacional: o longa-metragem será exibido no Festival de Roterdã, entre os dias 25 e 27 de janeiro.
O AdoroCinema viajou a convite da organização do evento.