Verde-radioativa, uma fumaça toma conta da tela enquanto as poderosas batidas de um hip-hop ocupam o espaço sonoro: este é o paraíso dos rappers e é nele que Patricia Dumbrowksi (Danielle Macdonald), a.k.a. Killa P, deseja viver. No entanto, quando o despertador toca e a realidade derruba a porta, Patti se depara novamente com o longo e árduo caminho que a separa de seus sonhos.
Distante dos padrões de beleza - leia-se: magreza - impostos pela sociedade e candidata de baixo potencial no ambiente altamente sexualizado (e machista) do hip-hop, a jovem de Nova Jérsei precisa enfrentar o preconceito e os obstáculos para alcançar seu objetivo: a assinatura de um contrato com um magnata do rap. Em Patti Cake$, melancolia/humor e vida/surrealismo são opostos que se atraem; em entrevista exclusiva ao AdoroCinema, o cineasta Geremy Jasper falou sobre sua estreia na sétima arte, seu passado como diretor de videoclipes, o poder das rimas e o hip-hop, a música de nosso século:
A INSANA REALIDADE
Cores saturadas, edição vertiginosa, rimas despejadas na velocidade da luz e, frequentemente, mulheres semi-nuas: é praticamente seguro dizer que mais de 90% dos videoclipes de hip-hop - e funk - do mundo contêm um ou mais desses elementos. Da louca estética dos curtas musicais, surgiram inúmeros realizadores cinematográficos; diretores como David Fincher, Spike Jonze e Michel Gondry iniciaram suas carreiras no segmento musical. E como seus antecessores, Jasper, o mais novo membro da safra, também teve que encontrar o equilíbrio entre o realismo e a "insanidade":
"Mesmo antes de escrever o roteiro, já sabia que eu queria combinar esses dois amores. Um dos meus deuses do cinema é Federico Fellini, então sabia que queria trazer essa vida rica, fantástica e alucinante para Patti. Não queria que fosse um drama realista puro ou um filme independente padrão. Mas, ao mesmo tempo, sabia que esses personagens excêntricos pareciam ser maiores que a vida no roteiro e não queria que eles fossem caricaturas. Queria que eles parecessem reais. Então, em relação aos personagens, abordei o filme como se fosse um documentário. Para torná-los mais críveis, mais emocionantes. E Patti não podia ser só deprimida, para baixo. A imaginação dela é muito rica. Então, quis ser capaz de atuar nos dois lados. Queria que tivéssemos um orçamento maior para fazer mais daquelas sequências de sonhos. Escrevi algumas cenas bem elaboradas nas primeiras versões do roteiro, mas elas eram muito caras".
PATTI E JHERI
Os personagens excêntricos citados por Jasper são a bartender Patti e seu parceiro de rimas e farmacêutico de quinta categoria, Jheri (Siddharth Dhananjay). Como dois outsiders - duas figuras marginalizadas pela sociedade e pelo establishment musical - que são, eles poderiam facilmente chegar às telonas como pessoas impossíveis ou inimagináveis não fosse o ótimo trabalho da dupla de atores escalada pelo cineasta. A naturalidade, segurança e desenvoltura que eles demonstram impressiona - especialmente quando se leva em consideração que a australiana Macdonald nunca tinha cantado rap na vida e que o indiano Dhananjay fez sua estreia como intérprete em Patti Cake$:
"Patti e Jheri - especialmente ele - são muito únicos, não são personagens comuns para os atores. Queria encontrar pessoas que realmente pareciam ter vindo daquele bairro [...] Como vivi muito tempo com esses personagens e cresci no mesmo bairro em que Patti cresceu, sabia como esses personagens deveriam parecer e ser. Então, embarquei em uma jornada para encontrar estes rostos e personalidades. Encontrei Sid Dhananjay em um site chamado WorldStarHipHop [...] Fiquei encantado por ele na hora. Ele era o cara, era quem eu queria no papel. Ele me pareceu ser o ator certo, era o Jheri que tinha na minha cabeça [...] E Danielle nunca tinha cantado rap antes, a personalidade dela é completamente diferente da de Patti. Danielle é a pessoa mais doce e mais esforçada que já conheci, e pareceu perfeita para o papel. Era como se fosse uma garota do meu bairro. Quando estava prestes a escalar Danielle, enviei a foto dela para minha mãe para confimar que ela poderia ser uma garota de Nova Jérsei. E ela aprovou".
O encontro fortuito, no entanto, não foi evidentemente suficiente para suprir toda e qualquer deficiência do filme. Para chegar ao nível certo requerido pelo roteiro, os três estreantes tiveram que ensaiar, treinar e praticar bastante:
"Trabalhamos juntos por quase 2 anos para Danielle aprender a cantar rap, aprender o sotaque, o jeito de andar e ela se transformou em Patricia Dumbrowski. As pessoas acham que eu a encontrei no bairro e decidi fazer um filme sobre ela, o que é muito engraçado. É exatamente o oposto disso. Foi uma ótima combinação porque Danielle não tinha nenhuma relação com música antes e Sid nunca tinha atuado, então os dois cuidaram um do outro, criaram uma amizade forte [...] Foi a combinação perfeita para o filme. Eles estavam muito abertos a tudo".
A TRANSIÇÃO
Assim que Jasper encontrou suas estrelas, seu caminho certamente ficou mais fácil. Segundo conta o cineasta, um dos momentos mais complicados pelos quais passou na pré-produção de Patti Cake$ foi quando precisou entender a nova mídia com a qual iria trabalhar. Como o longa é basicamente um estudo de personagens embalado pelo rap, o diretor teve que "virar a chave" e aprender a lidar com atores:
"Os anos de experiência dirigindo videoclipes me ensinaram a fazer com que as coisas parecessem ser mais bem produzidas com pouco dinheiro, a usar máquinas de fumaça, luzes coloridas, efeitos especiais. Mas, por outro lado, a narrativa dos videoclipes é exatamente o oposto da narrativa do cinema. Videoclipes são sobre luzes brilhantes e montagens desconjuntadas. Não tem nada de desenvolvimento de roteiro e de personagens. A narrativa de um videoclipe pode ser bem abstrata. Mas no cinema, a aparência importa muito menos do que a personalidade dos personagens, do que a ambientação da trama, do que entender as relações em jogo. Levei anos para finalizar o roteiro".
O REGRESSO
Se Jasper encontrou dificuldades por um lado, ele certamente pôde se basear em suas próprias experiências para descobrir a estrada e a abordagem certas para seu longa de estreia. De fato, o comandante de clipes como "Love You Like a Love Song" e "Dog Days Are Over" - da cantora e atriz Selena Gomez e da banda Florence + The Machine, respectivamente -, nascido e criado em Nova Jérsei, regressou à sua juventude como uma forma de atingir o futuro:
"Pude encontrar o caminho em minhas memórias, na bela combinação entre lembranças e imaginação, onde você não sabe onde uma termina e a outra começa. Elas se misturam. Não precisa ser uma memória exata. Você escava seu diário mental e refaz esse mapa da imaginação. Mas também havia algo que eu sentia quando tinha 23 anos e ainda morava em Nova Jérsei que eu queria colocar no filme. Sempre tentei me assegurar que essa melancolia enjaulada estivesse por baixo da superfície. Danielle foi ótima em trazer isso à vida. Tendo crescido lá, eu sabia onde poderia filmar, a geografia da cidade. Sabia como as coisas deviam ser, como deviam cheirar. Conhecia todos esses pequenos detalhes".
TRILHA SONORA ORIGINAL
As contagiantes canções de Patti Cake$ foram escritas por Jasper para o filme, mas parecem existir desde sempre porque o diretor e compositor consegue embutir um forte sentido de realidade em cada uma delas. De acordo com ele, o processo foi intenso e complexo, porém muito divertido e importante para guiar os passos de Macdonald e Dhananjay no set:
"A música é o meu primeiro amor, o lugar no qual me sinto mais confortável é o estúdio. Venho escrevendo canções como as do filme há 20 anos e foi muito divertido para mim porque tive que escrever toda a trilha durante a pré-produção. Foi um processo muito intenso, tive dois meses para escrever e gravar todas as canções antes de filmarmos. Isso me deu a chance de entrar na pele de todos os personagens. Eu escrevia e aí cantava os raps de Patti, os refrões de Jheri, as músicas de Barb [Bridget Everett] Mesmo que fossem só demos e que as versões dos atores sejam muito melhores que as minhas, gravar e cantar ao microfone, como diretor, me ajudou a entrar na pele e a entender a mentalidade de cada personagem [...] Foi como ensaiar antes de filmar. Foi um trabalho difícil pra caramba, mas foi muito gratificante".
O PODER DAS RIMAS
Ao redor do mundo, o hip-hop - e suas variações ou gêneros por ele influenciados - é uma das principais formas de expressão artística para jovens marginalizados e/ou da periferia. Papel, caneta e voz: estes são todos os elementos necessários para compor um rap. E como geralmente provém das camadas menos abastadas da população, os raps frequentemente versam sobre problemas sociais, culturais e políticos que continua desfavorecendo estes artistas e seus "conterrâneos". Para Jasper, o rap é o melhor gênero para dar vazão à raiva dos oprimidos - um papel que foi exercido, anteriormente, pelo rock e pelo metal -, entre outros inúmeros complexos sentimentos humanos:
"O rap é a forma mais moderna de rebeldia. O hip-hop é a música do século XXI. Nos Estados Unidos, principalmente, é tudo. É o gênero mais popular. O hip-hop pode ser agressivo e raivoso, mas também pode ser divertido e leve. Em qualquer festa de faculdade dos EUA, 80% do tempo toca hip-hop. E o hip-hop também pode ser emocionante, introspectivo. É isso que torna o gênero tão incrível como expressão artística: o hip-hop é muito maleável, pode traduzir qualquer emoção. É isso que me empolga no hip-hop. O gênero sempre se reinventa, sempre se transforma em algo novo. O metal e o rock, infelizmente, bateram em um muro e estão gastando os pneus, de certa forma. As músicas mais recentes do metal não são tão diferentes assim das músicas de 20 anos atrás. Quanto ao hip-hop, você pode colocar uma música moderna para tocar e ela vai soar muito diferente de uma música de 20 anos atrás".
RODRIGO TEIXEIRA
Ao ser questionado sobre como foi o trabalho com o produtor Rodrigo Teixeira (A Bruxa), Jasper foi só elogios - "Ah, o grande Rodrigo!", exclamou o realizador. Em alta no circuito internacional dos filmes de arte e cotado para o Oscar de Melhor Filme por ter produzido o aclamado Me Chame Pelo Seu Nome, o brasileiro foi instrumental para o sucesso de Patti Cake$:
"Antes de dirigir, fiquei nervoso porque existem muitas histórias famosas sobre diretores de primeira viagem e seus patrocinadores. A produção do primeiro filme de Paul Thomas Anderson [Jogada de Risco] foi um pesadelo porque os produtores tiraram a obra dele. Existem muitas histórias sobre como os filmes foram reeditados sem o diretor ou como cineastas foram obrigados a escalar fulano ou sicrano. Esse cenário é o mais distante possível da forma como Rodrigo trabalha. Ele foi aberto, confiou em mim e deu sua benção logo no início da produção. Ele confiou em mim para tudo. Nós escalamos pessoas que nunca atuaram e nem cantaram rap antes! Era um risco, um grande risco que ele correu. Ele nunca ficou nervoso, nunca impôs nada. Sempre ficou entusiasmado e tranquilo com o que estávamos tentando fazer. E esse é o cenário ideal, é isso que você quer. Ele é um cinéfilo, adora a experiência cinematográfica, compreende o romance por trás da direção. Ele é o cara com quem você quer trabalhar. É um grande parceiro".
PROJETOS FUTUROS
Retomando seu amor por Fellini, Jasper encerrou a conversa apresentando os detalhes iniciais de seu próximo projeto, ainda sem título e prometendo surpreender o público:
"O próximo filme que farei será ainda mais felliniano [...] Ainda está nos estágios iniciais de desenvolvimento, estou no modo pesquisa. Será um pouco mais psicodélico, mais surreal, onírico. Terá um elemento musical e será ambientado em um mundo que você nunca viu. É tudo o que posso dizer. É nisso que estou trabalhando. Será um filme único".
Patti Cake$ estreia na próxima quinta-feira, dia 30 de novembro.