A primeira noite da edição de 2017 do Festival MIMO de Cinema na cidade do Rio de Janeiro foi marcada pelo escapismo autorreferente do laureado cineasta sérvio Emir Kusturica, que revisitou os traumas e sonhos dos Balcãs em Na Via Láctea, e por duas reflexões sobre os sentidos de duas manifestações culturais negras tão distintas, o candombé uruguaio (no curta-metragem Tambores Afro-Uruguaios) e o hip hop carioca (no longa O Som do Tempo).
Com uma programação dedicada a filmes que tem a música como eixo central, o Festival MIMO de Cinema ocorre desde 2004 paralelamente a uma série de concertos de artistas nacionais e internacionais que são o ponto forte do evento. A mostra de filmes, também realizada nas cidades de Ouro Preto, Tiradentes, Paraty e Olinda, é realizada no Rio de Janeiro há três anos.
Ao apresentar Na Via Láctea para o público do Cine Odeon, Rejane Zilles, curadora e diretora do festival, ressaltou que o longa é "um convidado especial" que quebra o recorte dos filmes dedicados à música "por uma boa razão". Após um problema com o voo que o traria para o Brasil na sexta-feira (10), Kusturica não pôde chegar à tempo para a première do filme no Odeon. A presença do cineasta, entretanto, está confirmada na mostra musical do MIMO. O diretor se apresenta com sua banda, a The No Smoking Orchestra, na Marina da Glória neste sábado (11).
O realizador enviou um vídeo para a produção do evento que foi exibido para os presentes onde lamentou não ter chegado no Brasil ainda, mas disse que estava "em algum lugar entre Belgrado e o Rio de Janeiro", arrancando risos da plateia. A cópia de Na Via Láctea exibida para o público foi disponibilizada por uma distribuidora de Portugal, por isso as legendas estavam na lingua portuguesa que vem do outro lado do Atlântico. A sessão na noite de abertura do MIMO foi a primeira projeção na América Latina do filme que concorreu ao Leão de Ouro em 2016 no Festival de Veneza.
Carta de amor
Kusturica é um dos raros artistas que integram o seleto grupo dos diretores que venceram a Palma de Ouro em Cannes duas vezes. Conhecido por obras que mesclam comentários sociais sobre a vida na antiga Ioguslávia com lampejos de surrealismo escapista e comicidade, o multipremiado realizador nascido em Sarajevo revisita alguns temas caros de sua filmografia em Na Via Láctea, seu primeiro longa-metragem de ficção desde Promessas (2007).
Com ecos visuais que fazem referência direta ao excelente Vida Cigana (1988), mas com um comentário político que não faz jus à tenacidade dos celebrados Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985) e Underground - Mentiras de Guerra (1995), seu trabalho mais recente é uma fábula em três atos sobre o amor em tempos de guerra composta tanto por belos lampejos poéticos quanto por deslizes na tonalidade do filme e exageros.
Com um clima bucólico que quase evoca certa atemporalidade e induz falsos anacronismos, a trama se passa durante um período de cessar fogo nunca respeitado pelos soldados durante Guerra da Bósnia (1992-1995). Neste contexto, o gentil e reservado leiteiro Kosta enfrenta o fogo cruzado para entregar suprimentos para combatentes na zona de conflito na região rural de seu país. Interpretado pelo próprio Kusturica, o personagem, que carrega muito da personalidade do próprio diretor, anda montado num burro com uma ave de rapina nos ombros, ama música e é capaz de fazer um falcão dançar quando toca um instrumento. Ele é vizinho da extrovertida Milena (Sloboda Mićalović), uma ex-ginasta que não hesita em mostrar suas habilidades esportivas nas horas mais inapropriadas, que está de casamento marcado com Kosta.
Um dia, Milena leva a personagem referida apenas como Noiva para casa. Interpretada por Monica Bellucci, a personagem que já enlouqueceu homens de desejo é uma simples mulher italiana com raízes sérvias que tem um passado traumático. Milena acolheu a forasteira para forçá-la a se casar com o pitoresco Zaga (Predrag Manojlović), um herói de guerra que funciona no enredo para expor o lado mais ridículo do espírito militarista. Na Via Láctea ganha ares de romance trágico clássico quando Kosta e a Noiva desafiam convenções e se apaixonam.
Kusturica dá diversas provas de sua criatividade para subverter a realidade com boas metáforas visuais. Em um filme marcado pela memória afetiva de seu realizador, o diretor comenta a dureza e impetuosidade do passar do tempo com um imenso relógio descontrolado que fere quem tenta alterar seus rumos. Como numa fábula da Disney à la A Branca de Neve, há muitos bichos ao redor do protagonista. Aqui os animais estão entre os personagens mais carismáticos e encarnam uma humanidade solene, qualidade que os próprios humanos parecem renegar em tempos de guerra. Os delírios visuais do longa-metragem também rendem de risadas (a alusão a Flashdance - Em Ritmo de Embalo, a galinha que briga com o espelho, os bêbados que aprendem a mover a orelha) à embrulhos no estômago (quando gansos nadam em sangue de porco, um falcão come um olho humano) ou ambas (como quando spoiler: a orelha de Kosta é costurada de volta à sua cabeça pela Noiva).
O apelo surrealista do filme, um dos trunfos de sua primeira metade, perde força na medida que a trama principal avança se perde ao tentar equilibrar seu tom escapista com os comentários sobre a guerra e o enredo romântico. O roteiro assinado por Kusturica não se furta de apelar para Deus ex machina e a sucessão de situações mirabolantes torna-se cansativa e prejudica os bons simbolismos do enredo — como o paralelo com a história de Adão e Eva. Os efeitos especiais ruins também pesam contra a obra, por mais que também possam ser entendidos como mais uma estratégia cômica.
Como ator, Kusturica entrega uma perforamance regular. Com pouco em mãos, Bellucci consegue tirar leite de pedra com uma atuação elegante e para uma personagem sem muitas dimensões. Manojlović também se destaca graças à insanidade de Milena.
Mais uma vez, a paixão do diretor pela cultura e passado de seu país exala bons momentos e uma vibrante energia na tela, mas até a mais bem intencionada carta de amor corre o risco de pecar pelo exagero e Na Via Láctea ocupa um lugar menor na consagrada filmografia de Kusturica.
Rap é compromisso
"Nossa proposta foi não só contar a história do rap, mas adentrar um pouco mais nessa cultura", contou o diretor Arthur Moura ao apresentar O Som do Tempo para o público no Cine Odeon. "Mas a gente tentou trazer aspectos que não foram abordados antes no meu filme anterior, o De Repente: Poetas de Rua, como a questão do negro, a questão de gênero e a ocupação dos espaços públicos, que é uma questão de fundamental importância."
Visualmente, o filme é prejudicado pela fotografia e montagem irregulares. Com falas de músicos como Marcelo D2 e Black Alien, a ausência de MV Bill, frequentemente citado pelos entrevistados e um dos maiores proeminentes rappers cariocas, foi sentida. Ainda assim, trata-se de um bom documento para interessados pelo gênero e por música underground nacional.
Estruturado para cobrir o máximo de facetas da história do rap no Rio de Janeiro nos últimos 20 anos, O Som do Tempo apresenta um conjunto vasto de depoimentos para compor um mosaico da cultura hip hop carioca. Desenvolvido ao longo de sete anos, o filme abraça muitas frentes. Com dezenas e dezenas de depoimentos (são 70 entrevistados, segundo o site Rap Nacional) o filme precisa dispensar pouco tempo de tela para muitas figuras e assim acaba muito fragmentado. Quem não está familiarizado com o movimento pode acabar perdido ou sem entender exatamente porque aquele personagem foi importante para a cena musical.
Por outro lado, é justamente a pluralidade de vozes que faz da obra um interessante exercício de reflexão sobre os rumos do rap carioca. Como manter a natureza contestadora do gênero numa realidade capitalista onde tudo, até a revolta, pode se tornar mercadoria? Enquanto o rapper Felipe Ret se orgulha de vender o máximo possível a sua arte há quem critique o "esvaziamento ideológico" das rimas atuais. A obra contrapõe visões contrastantes que enriquecem o debate sobre o rap "ególotra" contra o rap "consciente". O recorte de gênero também oferece insights profundos sobre como o machismo no hip hop é reflexo de questões estruturais e de classe e também dá voz à rappers mulheres que apontam contradições entre a postura de MCs homens que cantam sobre liberdade e reproduzem discursos misóginos.
Ritmo da resistência
O curta-metragem Tambores Afro-Uruguaios abriu o Festival MIMO de Cinema lançando luz na tradição do candombé, ritmo que chegou aos nossos vizinhos do sul trazido pelos africanos escravizados e que foi, de certa maneira, gentrificado e extirpado de seus sentidos originais por conta da perseguição às religiões de matriz africana.
O filme é um esforço para apresentar o tradicional estilo e se baseia na ótima oratória da cantora e compositora Chabela Ramírez, bastiã do candombé. Só é uma pena que o filme use tanto tempo para explicar o que é o gênero ilustre tão pouco isso através da imagem e do som. Em determinado momento, um entrevistado explica de forma poética a diferença entre três tambores diferentes que se complementam no estilo musical, mas a isso não é mostrado na prática.
"O curta faz parte de um projeto que se chama Diáspora Afro na América do Sul onde a gente está fazendo uma pesquisa sobre os negros do continente. No Uruguai o candombé é o ritmo musical, um ritmo afro-uruguaio, muito forte. Nesta pesquisa a gente percebe que a música e o tambor são uma ligação muito ancestral", explicou Rafael Ferreira, codiretor do filme ao lado da marroquina Naouel Laamiri, ao público. "E uma das maiores forças em destaque da diáspora africana na América do Sul é o tambor."