Para os críticos de cinema, os festivais representam não apenas a oportunidade de ver longas-metragens criativos que ainda não chegaram aos cinemas, e talvez jamais cheguem, mas também uma raríssima possibilidade de descobrir a produção de curtas-metragens no país.
No X Janela Internacional de Cinema do Recife, a mostra competitiva de curtas nacionais começou com cinco produções ousadas em forma e conteúdo. Algumas delas dividiram os gostos da imprensa e geraram bons debates - algo bem saudável para qualquer seleção de filmes.
A evolução do aborto
A Passagem do Cometa, de Juliana Rojas, aborda a questão do aborto ilegal. Numa clínica clandestina, uma médica (Gilda Nomacce) atende diversas pacientes todos os dias, enquanto lá fora as pessoas se questionam sobre uma ocasião especial: a passagem de um cometa. O fenômeno cósmico serve como medida de tempo para a cineasta questionar quando teremos a legalização do aborto na sociedade brasileira.
Rojas, presente também na mostra de longas-metragens com As Boas Maneiras, surpreende com uma ótima cena combinando música e animação. A parte dramática, no entanto, é simples até demais no que diz respeito a enquadramentos e fotografia. O curta traz um debate importante, mesmo que através de uma estética tímida demais para os padrões da cineasta.
Representar a ausência
Torre, de Nádia Mangolini, efetua uma expressiva combinação de depoimentos documentais, em voz off, com a animação. Cada membro de uma mesma família relembra o desaparecimento do pai, assassinado pelos militares, enquanto a técnica desenvolve traços particulares de acordo com cada fala.
O curta-metragem se apoia num roteiro conciso e potente, enquanto busca na liberdade da animação (em traços brutos, fortes, usando a força tanto das cores quanto do espaço em branco) uma maneira de representar a ausência, o desaparecimento. A ideia da mãe presa na torre, observando o mundo e a própria família por meio de frestas, constitui uma excelente metáfora para a opressão da ditadura.
Distanciamento ou paródia?
O filme mais controverso até o momento foi Terremoto Santo, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Os diretores criam uma narrativa composta apenas por apresentações de cantores evangélicos, em composição ultra estetizada e kitsch. Wagner e Burca apostam nas cores, na simetria perfeita, na imponência dos cenários.
Enquanto parte do público no Cinema São Luiz gargalhava com as cenas, outra parte se mostrava incomodada. Os diretores estariam ridicularizando os artistas, que teriam participado do projeto sem conhecer as intenções paródicas? Ou os cineastas apenas ressaltam a construção da performance como artifício, sobrepondo o caráter artificial da cultura (os gestos e a entonação particulares do gospel brasileiro) à natureza ao redor? O kitsch tende necessariamente ao ridículo, à falta de empatia? Ou o evidente refinamento da composição e montagem afasta a noção de desprezo? O filme proporcionou um importante debate sobre a ética das imagens.
O documentário como representação do real
Experimentando o Vermelho em Dilúvio II, de Musa Michelle Matuizzi, parte de uma estrutura bastante simples. A cineasta registra a sua própria performance pelas ruas do Rio de Janeiro, quando caminha com uma máscara improvisada e alfinetes que perfuram sua pele. Diante da estátua de Zumbi dos Palmares, ela retira os ornamentos, enquanto o sangue escorre pelo rosto e as lágrimas caem dos olhos.
Novamente, polêmica nos corredores do festival: o simples registro de uma performance bastaria para compor um filme? O cinema não implicaria intervenção, construção de uma realidade? Ora, talvez a beleza do projeto se encontre no embate entre a apresentação violenta e o registro cinematográfico leve, transparente. O filme acredita que a arte seja capaz de tocar seu espectador sem explicações históricas, sem palavras.
O uso expressivo dos planos próximos e das imagens desfocadas completa a sensação de incômodo diante da artista ferindo a si mesma. Neste momento, o cinema reafirma de modo brutal o seu compromisso com o real, com a verdade, numa escolha mais do que apropriada para uma apresentação política.
A passagem do tornado
O último curta apresentado, Filme-Catástrofe, dirigido por Gustavo Vinagre, sintetiza o embate que permeou a primeira parte dos curtas, entre reforçar os artifícios do cinema ou apostar numa abordagem de mínima intervenção. Neste projeto, o cineasta confronta três mulheres dentro de um apartamento, refletindo sobre a religião, a sociedade e a política. Diálogos com "Fora Temer" e a catástrofe ambiental de Mariana garantem a atualidade do discurso.
O mais interessante é ver como a mise en scène, voluntariamente artificial, parte de uma provocação para chegar a uma representação lúdica do filme-catástrofe, no caso, a chegada de um tornado. A comparação entre catástrofes (a crise brasileira e os fenômenos naturais) é simples, porém apropriada ao formato do curta-metragem. Além disso, Julia Katharine é uma atriz expressiva, que mereceria mais projetos de destaque. Ela tem bom desempenho diante da experiente Gilda Nomacce, sempre muito confortável em histórias de gênero.
Confira as críticas do AdoroCinema sobre os longas-metragens do X Janela:
As Boas Maneiras
Contatos Imediatos do Terceiro Grau