Por trás de toda a festa em torno da realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro, há algumas histórias tenebrosas envolvendo a política por trás do esporte. Uma delas é apresentada no documentário Favela Olímpica: a remoção arbitrária dos moradores da Vila Autódromo, comunidade instalada há décadas na área onde viria a se tornar o badalado parque olímpico, na Barra da Tijuca.
Dirigido pelo suíço Samuel Chalard, Favela Olímpica acompanha os esforços dos moradores da Vila Autódromo em permanecer no local, lutando contra as obras cada vez mais constantes e a pressão contínua da prefeitura e da polícia para removê-los, o quanto antes. Por trás da iniciativa está a especulação imobiliária, que desejava aproveitar a valorizada área para a construção de prédios destinados à classe alta carioca.
Exibido em primeira mão na Mostra de São Paulo, Favela Olímpica apresenta um olhar humano em meio aos contrastes entre a festa pela escolha da cidade como sede dos Jogos Olímpicos e os desmandos cometidos em nome de tal evento, de forma a cumprir agendas ocultas. O AdoroCinema conversou com o diretor Samuel Chalard e o produtor Serge Pirodeau sobre o tema, confira!
UM SUÍÇO NO RIO
Iniciamos nossa conversa com uma pergunta até mesmo óbvia: como um suíço foi parar no Rio de Janeiro para rodar seu primeiro longa-metragem? "Fiquei interessado pela questão das Olimpíadas não pelo âmbito do esporte, mas pelo poder do evento sobre uma cidade, o poder de mudança", explica o diretor.
"Em 2013, os brasileiros foram às ruas com cartazes, dizendo 'queremos hospitais'. A primeira vez aconteceu no Rio, uns três anos antes das Olimpíadas, e aí encontrei a história da Vila Autódromo, que parecia bem forte. Era tão vizinho ao Parque Olímpico, que isto foi uma evidência de que deveria fazer algo lá. As pessoas me disseram que a comunidade iria ficar seis meses em uma área e depois a polícia chegaria e todo mundo teria que sair."
"Começamos na Vila Autódromo, mas também buscamos autorização para filmar dentro do Parque Olímpico e conseguimos uma entrevista com o Eduardo Paes [prefeito da cidade na época das Olimpíadas]. Então, foi bem interessante ter os dois lados do muro: de um lado a destruição, do outro a construção."
A VOZ DA COMUNIDADE
Desde o início, Favela Olímpica toma partido dos moradores da Vila Autódromo, relatando não só as dificuldades que enfrentam para permanecer no local mas, também, os desmandos da prefeitura. Para tanto, foi necessário um trabalho de aproximação e confiança junto aos próprios moradores.
"No início foi complicado, porque a cada dia tinha mídia internacional, militantes, enfim. Os moradores diziam 'ah, é bom você ir lá porque vai ajudar a gente a ficar', mas eu dizia 'não podemos ajudar, porque o filme vai sair só depois das Olimpíadas'. Quase um ano depois, eles começaram a entender que a intenção maior era registrar toda a história dessa luta", explica Samuel Chalard. "A gente não dormia lá, mas passava o dia inteiro com eles, comia nas casas das pessoas. Com o tempo, ficamos amigos", ressalta o produtor.
"Este filme não fala só da Vila Autódromo e da Vila Olímpica. Ele fala do que é ser expulso de casa, do grande contra o pequeno, do rico que não respeita o pobre. Tem mensagens que são universais", ressalta o produtor Serge Pirodeau. "E a importância de ter um lugar no mundo, não só uma casa, um lugar onde morar, mas ter vizinhança, uma relação com o chão, com a natureza, com o trabalho. Então uma outra casa não é a mesma coisa, foi todo um tipo de vida que foi mudado", complementa o diretor.
ENTREVISTA COM O PREFEITO
Uma das maiores dificuldades ao rodar Favela Olímpica foi justamente para conseguir entrevistar Eduardo Paes, então prefeito da cidade. Foram seis meses de negociações, onde foi necessário até mesmo apresentar com antecedência as perguntas que seriam feitas.
"Se as pessoas que deram autorização para filmarmos dentro do Parque Olímpico soubessem que a gente estava filmando há anos, ia dar problema. Eles não sabiam que era algo mais crítico", explica o produtor. "Foi difícil conseguir falar com os arquitetos de novo, eles estavam com medo. A gente chegou a achar que estavam pedindo para eles não falassem."
SEMPRE A POSTOS
Para que Favela Olímpica pudesse ser rodado, tanto Samuel quanto Serge tiveram que elaborar uma dinâmica própria para as filmagens. Até mesmo porque o diretor não morava no Rio, vindo à cidade aproximadamente a cada três meses.
"No início trabalhei com um cinegrafista, que veio da Suíça também, e logo encontrei o Serge", explica o diretor. "Ele mora no Rio, então podia ficar lá com a câmera pronta, porque tinha todo um período em que não sabíamos o que iria acontecer de um dia para o outro: a polícia podia chegar a qualquer momento."
"Chegava de surpresa, às cinco da manhã, batia na porta e expulsava as pessoas. Eu recebia uma mensagem que dizia 'a polícia chegou agora e não sabemos que casa eles vão escolher'. Eu ia de carro e a presença da câmera, de uma certa forma, obrigava a polícia a ser mais respeitosa. Começou a ter essa troca de 'vem logo, a gente precisa ter sua presença aqui'", explicou o produtor.
"Era complicado porque eu não sabia o que iria acontecer. Eu reservava o meu vôo dois meses antes de chegar, então não sabia o que ia acontecer na época em que estivesse lá", explica o diretor. "Cada vez que o Samuel chegava acontecia muita coisa. A gente passava dois dias quase sem parar de filmar. Era só ele chegar que acontecia alguma coisa muito forte com um dos personagens principais. Quase todas as viagens foram assim", complementa o produtor.
O RISCO CONSTANTE
"No início, as pessoas falavam que havia a possibilidade [da comunidade] desaparecer muito rápido, o que era um risco para gente, no sentido de não dar tempo de fazer esse filme", explica o produtor. "Quanto mais as Olimpíadas se aproximavam e mais eles resistiam, mais a gente entendia que tinha uma enorme força acontecendo."
"Quando as Olimpíadas ainda estavam distantes, foi mais difícil para a comunidade. Mas teve um ponto onde o evento estava tão próximo que o Eduardo Paes precisava de tempo para fazer uma mudança. Então, o tempo virou como uma ajuda para a comunidade", ressalta o diretor.