No drama Uma Espécie de Família, a médica Malena (Bárbara Lennie) sonha em adotar um bebê. Ela encontra um serviço ilegal, com uma mãe de origem disposta a entregar o próprio filho por não ter condições financeiras de criá-lo. No entanto, logo após o parto, a família da mãe biológica começa a exigir suborno de Malena para entregar o bebê.
A complexa trama moral, dirigida por Diego Lerman, foi apresentada na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O filme tem a particularidade de ser produzido por seis países diferentes: Argentina, Brasil, França, Alemanha, Dinamarca e Polônia.
O AdoroCinema conversou com o cineasta sobre o projeto:
Você trabalha com muitas imagens próximas do rosto da atriz principal, que está presente em praticamente todas as cenas. Como fez essa escolha?
Diego Lerman: O que trabalhamos com o diretor de fotografia, Wojciech Staron, e também com o diretor de arte, Marcos Pedroso, era como dar textura à imagem e certa profundidade capazes de trazer sensações através da imagem e do som. Além dessa atmosfera que me interessava particularmente, muitos planos são bem fechados e outros são bastante abertos. Optei por alternar.
Algo que o Alejandro Brodersohn pretendia com o filme era contar a história através de um ponto de vista, o de Malena, gerando ao mesmo tempo uma distância do espectador com o personagem. Não gerar uma empatia, mas sim uma dialética onde personagem e espectador estejam próximos e distantes ao mesmo tempo. A partir daí, para trabalhar a distância emocional e formal é preciso lidar com esse tipo de cisão, onde se está muito distante e em outro momento se está vendo tudo através de algo, não de maneira franca e direta, mas com elementos do contexto.
Apesar da polêmica em torno da adoção ilegal, o filme não toma partido de nenhum personagem. Qual era a importância desse posicionamento para você?
Diego Lerman: Senti isso quando estava fazendo a pesquisa para a realização do filme. Entrevistei muitas pessoas, incluindo mães que abandonaram os filhos por não terem outra opção, deixando as crianças na polícia, em quartéis. Era uma situação incômoda, mas o que elas me diziam era sensível e estrutural. Eu me sentia questionado.
A minha decisão foi construir o ponto de vista da maneira mais sólida possível e menos maniqueísta. Eu não tomo partido, mas tento mostrar a motivação de cada personagem. Nesse sentido, me ajuda pensar no filme como uma tragédia grega, onde os personagens atuam através de seus receios e motivações. Enquanto escrevia o roteiro e gravava, percebia que o filme se enfraquecia sempre que se tornava mais explicativo. A interpelação moral do espectador tinha que se basear nessa confluência de posições.
O roteiro demora a entregar informações essenciais ao espectador. Descobrimos aos poucos quem são aquelas pessoas, e o que realmente pretendem.
Diego Lerman: Eu gosto do cinema quando o espectador tem que especular, quando não está tudo dado. Isso também é uma estratégia narrativa para sustentar a intriga e abordar certas questões. Para mim, decidir quando começaria e onde terminaria a história era um grande desafio. Manter uma protagonista no meio da chuva com um gato, sem saber começava a viagem, era muito mais cativante para mim.
Quando o espectador se sente envolvido na trama e deseja fazer o trabalho que o filme lhe propõe, é ele que decide se embarca no suspense ou não. O filme, nesse sentido, é bastante radical. Ela espera que o espectador busque respostas para o que lhe foi perguntado.
A questão socioeconômica é muito forte no filme. Em certo ponto da trama, Marcela diz a Malena: “Pouco importa, vocês que têm dinheiro sempre se saem bem”.
Diego Lerman: Eu acredito que a diferença de classes é extrema em algumas regiões. Também acho que essas mulheres tão distintas, vivendo em mundos diferentes, se encontram no aspecto mais sensível, que é o destino de um bebê. O espectador tem que ver qual das duas, em algum ponto, é a mãe. Então, esse encontro através da diferença é onde estava a maior tensão, sobretudo porque a cena termina com as duas se abraçando e tentando se entender, se colocar no lugar da outra.
Isso é tão diametral por ser um universo distinto e por ser muito frágil essa ponte de encontro, e muito grande as diferenças que as separam. No entanto, também há algo de humano, que para mim é o fato de se entenderem mutuamente.
Como veio a escolha de Bárbara Lennie para o papel principal, e o trabalho de construção da protagonista?
Diego Lerman: Para interpretar Malena, eu precisava de uma atriz disposta a tudo. Desenvolver o aspecto emocional e o físico era um desafio enorme, além de ter que filmar em uma região meio complicada, sem conforto, onde nem havia sinal de telefone. Além de trabalhar com muitos atores, ela estaria em uma situação de muita exposição, muita entrega.
Eu precisava de uma verdadeira aliada e, em um momento, uma amiga me apresentou a Bárbara Lennie. Eu já tinha visto um filme com ela, A Garota de Fogo (2014), e sabia que ela havia feito várias peças de teatro. Começamos a conversar, e em algum momento parecia que não conseguiríamos encontrar uma data, e, finalmente, as coisas começaram a se acertar. Ela é uma atriz espanhola, mas foi criada na Argentina até os seis anos.
Acredito que Bárbara tenha sido muito valente em fazer uma personagem controversa, que não gera carinho, e sim um monte de sensações distintas. Penso nela como uma anti-heroína. É uma personagem que age contra seu próprio benefício, com descuido, porque está emocionalmente abalada. Além disso, era preciso ser econômica, sutil, e Bárbara conseguiu vencer esse desafio.
No início, somos levados a torcer por Malena, porque acompanhamos o ponto de vista dela. Mas ela vai tomando atitudes questionáveis que talvez criem distanciamento com o espectador.
Diego Lerman: Essa era a ideia. O que me interessava a uma história de adoção, de onde se constrói a moral individual e social, porque tudo relacionado à adoção é muito sensível. Eu queria estabelecer essa dialética com o espectador para ver onde acompanhava a personagem, onde se separava dela.
Isso faz parte do conceito do filme, porque muitas das vezes as pessoas se amparam na lei, mas no caso de algo tão delicado quanto a adoção e o lucro em cima disso, temos que pensar que às vezes os bebês morrem por aí porque as pessoas dão para adoção, mas não tem família que os acolha. Não funciona. Também tem cada vez mais diferença de classe social, a miséria está quase naturalizada. O aborto é ilegal entre as mulheres, que tampouco têm essa opção. Tantos elementos morais e éticos chamavam a minha atenção.
Como a coprodução com vários países, inclusive o Brasil, viabilizou o projeto?
Diego Lerman: O filme é uma coprodução da Argentina com mais cinco países: Brasil, França, Alemanha, Dinamarca e Polônia. No caso do Brasil, a Bossa Nova Films foi a primeira produtora a entrar no projeto. Naturalmente, era a região com a distância mais curta da nossa fronteira. Com a Bossa Nova, já tínhamos uma relação prévia e a vontade de fazer coisas juntos. Essa foi a primeira vez que pudemos fazer algo juntos, agora temos outro projeto, um filme de Suzana Amaral, que também será feito em coprodução.
Quando a coprodução funciona é algo mágico, porque se fala a linguagem do cinema, que se torna um idioma em comum. Foi muito importante e muito fácil, porque encontrei as pessoas adequadas. A equipe com quem eu trabalhei era singular porque a parte diretorial é francesa, a parte da imagem era da Polônia, a equipe de arte era brasileira e tínhamos alguns atores brasileiros, como a Paula Cohen.
Você acredita que a coprodução entre diversos países seja o caminho natural para viabilizar projetos de grande porte?
Diego Lerman: No caso deste meu filme e do anterior, há a possibilidade de uma estratégia financeira com aporte de diferentes países para construir e completar o orçamento. Este filme não tem uma expectativa de grande retorno comercial, mas vai ter uma exposição internacional, vai ser exibido em vários países e festivais. Para este tipo de projeto é essencial ter a coprodução. Mas se alguém quiser fazer um blockbuster no Brasil, por exemplo, imagino que o mais lógico seja trabalhar de maneira regional.
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