A diretora Beatrice Segolini foi agredida várias vezes pelo pai quando criança. Após um desses episódios, particularmente intensos, o homem foi expulso de casa. Décadas depois, nem Beatrice, nem a mãe ou os irmãos tocam no assunto.
O documentário As Boas Intenções, presente na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é uma tentativa de cicatrizar feridas. Beatrice e o co-diretor Maximilian Schlehuber retornam ao lar para compreender como os familiares, igualmente vítimas da violência paterna, lidam com o fato desde então.
O resultado é catártico, tão importante quanto difícil de assistir - leia a nossa crítica. O AdoroCinema conversou com os cineastas sobre o projeto:
Quais são os elementos universais nesta história tão pessoal?
Beatrice Segolini: O problema de comunicação. De repente, há um padrão que não permite que você se expresse. Estes padrões e mecanismos tiram suas palavras, sua forma de se expressar, fazem você se sentir mau, errado, você não consegue falar sobre isso. O filme mostra como é tão difícil quebrar um tabu, falar sobre a violência, admitir que você é uma vítima.
Maximilian Schlehuber: Na vida real, quando você briga, você só ouve a si mesmo e apenas algumas coisas que o outro fala. Neste filme, todos podem se identificar um pouco com algum personagem e veem tudo de fora. Então, é como ver a si mesmo de um ponto de vista externo. Isso é universal.
A sua família impôs alguma restrição na hora da filmagem?
B.S.: Na verdade, não. Sempre que havia um conflito ou dúvida do ponto de vista da minha família ou do meu, isso está no filme. O filme é totalmente transparente em relação a si mesmo. É auto-reflexivo.
M.S.: Mesmo que esses personagens respondessem conscientemente que não querem falar sobre determinado assunto, as entrevistas fazem com que eles se esqueçam das câmeras, que estão sendo filmados.
B.S.: O filme é sobre a impossibilidade de se comunicar com os outros e sobre as barreiras que nos impedem, interna ou externamente, de falar sobre tópicos delicados - nesse caso, a violência. Foi importante para nós mostrar a limitação que encontramos entre nós mesmos e os outros sempre que nos deparamos com algo que nos magoa.
Projetos autobiográficos podem funcionar como terapia?
B.S.: Em alguns casos, sim. No caso da minha família, o filme definitivamente foi uma terapia. Minha mãe, por exemplo, agora consegue nomear as coisas que viveu, reconhecer suas tragédias, admitir as dinâmicas da violência, confrontar outras pessoas que também passaram por essa experiência. Então, foi uma grande revelação para ela. Para o resto da minha família também porque eles nunca pararam de analisar a si mesmos e ao passado.
Para mim, obviamente não foi uma terapia. Eu vou precisar fazer uma terapia por causa do filme! É muito difícil encarar seus medos mais profundos e sombrios ao mesmo tempo em que você tem a responsabilidade de guiar os outros que estão envolvidos nisso, sem machucá-los por nada. E ainda fazer algo que é bom e compreensível para um público que não te conhece. Uma terapia precisa ser realizada em um ambiente protegido e seguro.
M.S.: As Boas Intenções foi como uma terapia de choque, um ato de quebrar a concha. Foi uma terapia na velocidade máxima. Às vezes, não é fácil falar para as pessoas mais próximas o que você pensa sobre elas porque você não quer machucá-las.
B.S.: Quando o outro te machuca, você entra na defensiva. Da necessidade de se defender, nasce a agressão. Então, de repente, a tela grande faz com que as coisas ganhem outra dimensão. Quando está vendo o filme, você pode relaxar, sem precisar se defender ou agredir.
Fazer um filme é assumir uma posição de poder. Desta vez, era você quem tinha poder em relação ao seu pai.
B.S.: Foi uma grande responsabilidade. Primeiro, há a relação de poder que você estabelece com a família e depois, com o público para quem você está contando a história. Antes de mais nada, eu estava preocupada com a minha família porque tinha muito medo de machucá-los. Isso aconteceria mesmo sem tocar em um tópico delicado. Esse foi um dos motivos para permitir que todos os membros da família tivessem espaço para serem ouvidos, para expressarem suas dúvidas sobre o processo de produção.
Em relação ao público, nós tivemos problemas durante a montagem. Como começaríamos o filme? Tivemos a ideia de começar com uma peça pelo fato de eu ser tanto a protagonista quanto a narradora de uma questão tão delicada. Às vezes, por causa de algum mecanismo bizarro, você perde a confiança do público ao admitir que foi vítima de violência porque eles te enxergam como uma pessoa quebrada por dentro, na qual não se pode confiar como cineasta ou narradora. Eles podem pensar que a história foi feita só para se ajustar à expressão individual. Mas não é assim. Nós tivemos que encontrar o início correto para ultrapassar essa barreira natural.
M.S.: Foi assim que Beatrice teve a ideia da abertura, da peça de teatro. Pessoalmente, acho que a cena com o pai dela é o caso mais exemplar da responsabilidade que tínhamos em relação à família por causa do poder da câmera e da montagem. Para mim, segui-lo com a câmera quando ele decide sair da sala é uma ação legítima porque ele é um personagem muito forte, é difícil confrontá-lo. Pessoalmente, acho que não houve problema algum em pressioná-lo. Ele conseguiu suportar isso.
Pela questão da violência doméstica, vocês consideram As Boas Intenções um filme político?
M.S.: Com certeza. As Boas Intenções é um filme político.
B.S.: Honestamente, estou orgulhosa do fato de que o público, aparentemente, consegue se identificar com todos os membros da família. Essa é a força do filme. As Boas Intenções não é maniqueísta. O filme explora as complexidades e faz com que pessoas que nunca passaram por essas experiências possam entender por que essas coisas acontecem e por que é tão difícil falar sobre elas. Se é verdade que você foi estuprada, por que você não falou antes? Por que você não foi à polícia? Acho que esse filme te coloca dentro de uma situação como essa e te faz entender como as mentes das pessoas afetadas funcionam.
As Boas Intenções faz com que as pessoas reflitam sobre si mesmas e sobre seus papéis em suas famílias. Muitos pais me vieram me dizer que perceberam que também são assim, de certa forma. Ou seus pais eram assim. Outros disseram que eram violentos com suas namoradas ou seus namorados. Isso é algo que pode mudar o mundo. É claro que um filme sozinho não fará isso, mas é importante ter filmes que nos façam refletir sobre nós mesmos e que nos incentivem a melhorar.
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