Unicórnio é um daqueles filmes capazes de articular as sensações mais potentes com movimentos de câmera sutis e composições visuais deslumbrantes do que com a linguagem verbal. Com uma narrativa dotada de uma vagarosidade lúdica e uma mise en scène cuidadosa, o longa-metragem encerrou a Première Brasil do 19º Festival do Rio e firma-se como um forte candidato ao Troféu Redentor de melhor direção e melhor fotografia.
A estreia mundial do filme foi realizada na última quinta-feira (12) e a ocasião ficou marcada pelo protesto de Patrícia Pillar, atriz e produtora do longa-metragem, contra a gestão de Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro. No dia seguinte, o longa foi exibido para o público do tradicional Cine Odeon, no coração cultural carioca, onde toda a equipe se reuniu para discutir a obra, que foi muito aplaudida ao término de ambas as sessões. O filme é a primeira ficção do cineasta Eduardo Nunes desde o multipremiado Sudoeste (2011), que também colecionou elogios por conta de seus aspectos visuais quando chegou aos cinemas.
FANTASIA ATEMPORAL SOBRE AMADURECIMENTO
Entre Teresópolis e Friburgo, no Parque Estadual dos Três Picos, foi rodada esta densa fábula rústica sobre perdas, amadurecimento e desejo que é guiada pelo olhar da menina Maria, vivida por Bárbara Luz, em seu primeiro trabalho nas telonas. "Foi um processo muito intenso", conta a debutante na sétima arte em entrevista para o AdoroCinema. "Minha relação com a Maria foi uma troca. Ela é uma personagem que pegou muito de mim e eu peguei muito dela. Eu fui entendendo ela com a ajuda do Edu. Ela só entrou. Eu estava naquele lugar e estava focada só naquilo."
Em uma localidade que nunca é especificada pelo roteiro, numa época que pode ser tanto um passado distante, futuro distópico, outra dimensão ou nos tempos atuais, a garota vive numa casa de campo com sua mãe, com quem mantém uma relação paradoxal de admiração e repulsa.
Enquanto explora campos verdejantes, colhe (e destroça) os frutos de uma imponente árvore venenosa e desenrola seus dias no desapressado compasso rural, a criança observa um misterioso unicórnio que só ela é capaz de ver e se move de forma imponente. Antes isolada com sua mãe (Patrícia Pillar), Maria vê com preocuapação a aproximação de sua genitora com um criador de cabras (Lee Taylor) que chegou na remota região. Em outra temporalidade, Maria conversa com seu pai (Zé Carlos Machado), internado no que aparenta ser um manicômio frio e estéril, sobre temas mórbidos, divagações sobre a personalidade de Deus e sobre a natureza.
Em diversos momentos da projeção Unicórnio deixa a impressão de que estamos diante de personagens arquetípicos. Para Patrícia, isso acontece porque o longa "propõe uma viagem para dentro, uma viagem ao interior" e renderia boas análises sob o viés da psicanálise. "É possível fazer uma análise pensando na transição da menina que se transforma em mulher, no descobrimento da sexualidade, em todas as questões com pai e mãe", explica a atriz.
"Unicórnio te remete a uma ancestralidade do Homem em todos os tempos", analisa Machado. "O filme fala sobre questões existenciais, sobre Deus, sobre quem nós somos. Por que eu estou aqui? Qual o sentido disso? Ao mesmo tempo há aquele campo maravilhoso, aquela geografia maravilhosa. Há a libido. Eros transpira através da Patrícia, principalmente. Parece que você está em outro mundo. Um mundo imemorial que é seu também. O filme tem qualidades transcendentais para a camada humana."
SENSAÇÕES
O enredo é uma amálgama de dois contos da autora brasileira Hilda Hilst (1930 - 2004), adaptados livremente por Nunes. "O filme é sobre minhas sensações sobre a obra dela. Não é uma adaptação. É uma transposição da minha lembrança da leitura desses contos. Até por isso ele é muito mais sensorial. O filme segue o que a palavra provoca", afirmou Nunes. O realizador contou que conhece a obra da poeta, ficcionista, cronista e dramaturga paulista "desde os 14 anos de idade" e que sempre teve consciência dos desafios de tentar levar o universo hilstiano para os cinemas. "Não é uma narrativa de ação. Não é uma narrativa que cria fatos ou tramas. Mesmo as obras de ficção da Hilda são em cima de ideias, em cima de conceitos."
Baseado nos contos Unicórnio — primeira ficção de Hilda — e Matamoros, que são contos totalmente independentes, de livros diferentes, o filme investe em uma série de construções visuais em detrimento dos diálogos, que são raros, na tentativa de canalizar o espírito da literatura da autora.
O pai é uma figura importante nas obras da escritora. "Quase todo o meu trabalho está ligado a ele porque eu quis", disse Hilda certa vez. O personagem de Machado é inspirado justamente neste homem. "O pai dela tinha esquizofrenia e ela só teve um contato mais próximo com ele aos 13 anos de idade", conta Nunes. "O mundo dela é captado pelo Eduardo para construir esse poema solto no ar", completa Machado. "E como é que a gente corporifica isso? Primeiro eu tive que me neutralizar fisicamente. Eu tive que buscar essa alma que está em descompasso com a vida e ao mesmo tempo está com a filha ali. Ele se conecta com o real e, de repente, se ausenta. Num certo sentido, ele é a própria morte, a própria inércia. Ele não consegue mais superar mais os obstáculos."
IMERSÃO CINEMATOGRÁFICA
Com um formato widescreen que preza pela horizontalidade radical, a fotografia de Mauro Pinheiro Jr. investe em cores vibrantes e saturadas e transforma as montanhas da região serrana do Rio de Janeiro em uma outra personagem deste drama atemporal. Para Bárbara, os trinta dias de filmagens entre Teresópolis e Friburtgo representaram uma verdadeira aventura para toda a equipe. "A gente tinha que ir com uma picape 4x4, pegar uma van, subir morro! Chovia e estava cheio de barro. Foi muita aventura, mas eu gostei muito. Eram lindas aquelas montanhas". Durante o debate no Odeon, a equipe do filme relatou que a local onde eles filmaram Unicórnio era tão isolado que foi preciso abrir uma estrada e construir uma ponte para chegar lá.
O trabalho de som estabelece o flerte com o cinema de gênero criando tensão na fusão de sons na natureza com a trilha sonora composta por Zé Nogueira, que usa como base o duduk, segundo o compositor, "um instrumento milenar do povo armênio que carrega uma tristeza e representa o genocídio daquele povo".
Inspirado na filosofia cinematográfica de realizadores como o brasileiro Leon Hirszman, o grego Theo Angelopoulos e o russo Andrei Tarkovski, o passar do tempo em Unicórnio é de um trote manso. Para Patrícia, o filme é um "antídoto para a velocidade sobre-humana que a gente está vivendo" pela forma como a obra instiga o espectador digerir as imagens com menos pressa. "Vivemos numa velocidade das máquinas que não é a velocidade natural do ser humano. A gente está sendo um pouco violentado de fora para dentro. Estamos sendo forçados a ter um ritmo que não é da nossa natureza. As vezes nós praticamente deixamos de respirar. Esse filme devolve um pouco esse tempo humano, esse tempo dilatado, esse tempo mais profundo."