Segundo o slogan do Festival do Rio, o objetivo da mostra carioca é fazer com que seu espectador "veja o mundo". Mas em 2017, a direção do evento decidiu aprofundar a missão e ofertou aos cinéfilos cariocas a oportunidade de observar muito mais do que o nosso ambiente imediato através da Realidade Virtual.
Nesta edição do Festival, cinco curtas-metragens compuseram uma mostra paralela destinada exclusivamente às produções em RV (sigla para Realidade Virtual, cujo conceito você pode entender melhor aqui). Provenientes da França e do Qatar, as produções — mesmo sem legendas — encantaram o público que conferiu a exibição no Centro Cultural da Justiça Federal, localizado na região central da Cidade Maravilhosa.
Mas ao mesmo tempo em que a tecnologia que promete mudar a sétima arte requer que os espectadores — chamado de experimentador no mundo da Realidade Virtual —, produtores e cineastas desenvolvam uma nova mentalidade, ela também faz com que críticos e jornalistas precisem mudar seus métodos de análise fílmica de modo a se adequar aos formatos narrativos propostos — foi exatamente isso que o AdoroCinema tentou fazer. Portanto, confira abaixo a nossa crítica para os filmes em RV do Festival do Rio.
SERGEANT JAMES:
Se você nunca teve uma experiência em Realidade Virtual e deseja explorar esse novo mundo, Sergeant James talvez seja o melhor filme para que um experimentador inicie sua trajetória com a tecnologia. O curta francês dirigido por Alexandre Perez acompanha uma noite mágica no quarto de uma criança que tem medo do escuro, colocando o público embaixo da cama do menino, no lugar do “monstro” escondido.
Assim, além de aproveitar uma fobia que já fez parte da vida de quase todos os seres humanos, Sergeant James oferece uma posição de destaque para que o experimentador observer os brinquedos que ganham vida durante a madrugada. O filme, baseado em um inteligente espetáculo de luzes e ruídos, demonstra, quase que didaticamente, as ferramentas que a RV possui para guiar o olhar do usuário pelo espaço ao seu redor. Como os enquadramentos retangulares do cinema tradicional são substituídos pelo ambiente 360º na Realidade Virtual, a luz e o som são os melhores meios que um diretor pode utilizar para comandar a percepção do experimentador. É por isso que podemos dizer que um bom roteiro para RV é aquele em que o roteirista consegue direcionar o olhar do público para os pontos de interesse que o filme deseja apresentar; e, nesse aspecto, Sergeant James é muito bem-sucedido.
Ao ser comparado com experiências em RV mais avançadas, este curta francês soa mais como um bom e simpático exercício narrativo introdutório. Como filme, não é muito mais que uma sequência pouco inspirada, graciosa apenas por nos colocar debaixo da cama do menino, investindo na carismática identificação entre público e personagem. No fim das contas, Sergeant James é um filme mais simpático do que bom.
I AM ROHYNGIA:
Um dos maiores potenciais para serem explorados na Realidade Virtual é a capacidade que a nova tecnologia tem de criar "máquinas de empatia", como afirma Chris Milk, cineasta pioneiro da RV. Neste documentário 360º produzido pelo jornal arábe Al-Jazeera, acompanhamos os passos de Jamalida, uma muçulmana da etnia Rohyngia, povo forçado a se tornar nômade por não ser aceito nem em seu país natal, Myanmar, nem no estado vizinho, Bangladesh.
Ao colocar o experimentador dentro da cena, uma não-ficção em RV pode cumprir as missões do jornalismo com muita profundidade. A trágica história e o ambiente de pobreza do campo de refugiados já seriam impactantes por si só quando narrados da forma tradicional; na Realidade Virtual, no entanto, podemos sentir mais de perto o que Jamalida experienciou. Montado e finalizado pela editora brasileira Maria Fernanda Lauret, I Am Rohyngia faz uso de técnicas de animação para contextualizar o passado de Jamalida e seu povo. Além de darem vida às sofridas memórias da protagonista, as ilustrações também são uma forma de dar corpo à esperança que nunca morre dessa guerreira. E quando ela diz que suas lágrimas poderiam encher um rio, mas que prefere dançar, somos mais próximos de Jamalida do que nunca.
OIL IN OUR CREEKS:
O outro poderoso e impactante documentário em RV trazido pelo Al-Jazeera e Lauret para a mostra do Festival do Rio segue os passos de Lessi, uma professora nigeriana que luta para inspirar suas jovens alunas mesmo frente ao desastre ambiental que acabou com a sua cidade. Após a explosão de um oleoduto, a paisagem hídrica da região ficou completamente devastada, deixando para trás um solo escurecido onde antes existiam árvores verdejantes e córregos límpidos.
Determinada a não desistir, Lessi batalha por suas pupilas todos os dias. Aqui, as ilustrações da montadora brasileira são utilizadas para dar vazão à imaginação da protagonista, que sonha em ver um mundo melhor e recuperar os dias de glória de sua cidade. Quando olhamos para frente, nos deparamos com a desolação; entretanto, quando giramos o pescoço e observamos o espaço às nossas costas na Realidade Virtual, percebemos que o sonho das matas e rios que existiam anteriormente na cidade ainda permanece vivo.
Assim como I Am Rohyngia, Oil in Our Creeks é uma verdadeira máquina de empatia. Paradoxalmente, o curta, através da tecnologia, nos torna mais humanos — um dos grandes objetivos dos defensores e pioneiros da RV. Em ambos os casos, a justaposição das animações às filmagens, com cada registro ocupando um eixo de visão do experimentador, faz com que as duas experiências se tornem ainda mais profundas, complexas e impactantes. Todo documentarista que deseja trabalhar com a RV deve assistir estas duas produções do Al-Jazeera: são filmes essenciais, emocionantes, técnicos e muito humanos.
I, PHILIP:
Evidentemente, nem todo filme em RV pode ser uma experiência tão impactante e profunda quanto Carne y Arena, a milionária instalação do cineasta Alejandro G. Inãrritú (Birdman) que transformava os experimentadores em "fantasmas" e os colocava no momento em que um grupo de mexicanos tenta atravessar a fronteira com os Estados Unidos. Mas quando não é possível explorar os limites da Realidade Virtual como o realizador fez, ainda existem curtas como I, Philip para salvar o dia.
O que pensam os andróides que sonham com ovelhas elétricas? Como é estar dentro da mente de um robô que acredita ser humano? Mais: o que faz de um indivíduo parte da espécie humana? Inspirado pela obra de um dos mais influentes autores da literatura de ficção-científica, Philip K. Dick, o curta I, Philip tenta responder estas perguntas e algumas outras.
Narrando a história de um andróide construído para — e que acredita, de fato — ser o falecido escritor, o filme do diretor francês Pierre Zandrowicz é uma exploração profunda da memória, dos afetos e dos limites existentes (e dos já ultrapassados) entre homem e máquina. Perfeita para a Realidade Virtual, a trama leva o experimentador por um passeio entre as lembranças humanas — vindas da mente do próprio Dick — e as lembranças maquínicas de um andróide.
Ao montar belíssimos planos "reais" — a cena da praia é verdadeiramente emocionante, tão bem fotografada quanto qualquer bela sequência do cinema tradicional — seguidos por gráficos digitais e sequências em frias palestras científicas, I, Philip confunde e encanta a percepção do público. Não importa se o personagem principal é ou não um ser humano; o grande trunfo do curta-metragem é nos inserir naquele mundo e nos fazer sentir e pensar como os replicantes de Blade Runner.
Utilizando a tecnologia a favor das emoções e construindo um verdadeiro show de imagens e sons, I, Philip é, ao mesmo tempo, belo e inteligente e mostra que é possível provocar nossa empatia até mesmo por máquinas. Certamente, este é o melhor e mais profundo filme de Realidade Virtual que fez parte da seleção oficial do Festival do Rio 2017.
Nota: O curta Altération também fez parte da seleção oficial; contudo, o filme não foi exibido na data de confecção desta matéria por causa de problemas técnicos.