A forte bandeira vermelho-sangue, ostentada por uma confiante embarcação, cruza o mar do canavial e completa a paisagem como se aquele fosse o sonho de um pintor. Na proa do barco - de sugestivo nome “Eu Sou Feliz” -, Bethânia navega rio acima, com o objetivo de construir um futuro para si na casa onde nasceu. Entretanto, para seguir em frente, é preciso acertar as contas com o passado antes que ele retorne, como sempre faz, em forma de pesadelo.
Impactante, simbólico, atual: assim é Açúcar, drama/suspense psicológico com doses de realismo mágico que compete pelo Troféu Redentor de Melhor Filme no Festival do Rio 2017. Para aprofundar o importante debate proposto pelo longa sobre a condição atual da sociedade brasileira - profundamente marcada pelas feridas ainda abertas da época da escravidão -, o AdoroCinema conversou com exclusividade com as protagonistas Maeve Jinkings e Dandara de Morais e a dupla de diretores Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira.
AS ORIGENS DE AÇÚCAR
Ambientado na zona da mata pernambucana - região povoada pelas ruínas de inúmeros engenhos de açúcar que foram instalados no local ainda no século XVI, apenas alguns anos após o descobrimento do Brasil -, o longa de Pinheiro e Oliveira parte de um registro imagético que transita entre a realidade e a fantasia e cria um ambiente de simbolismos e mistérios, que desafia a mente e as convicções da "boa filha que à casa torna".
"O filme nasceu de uma imagem que a Renata pensou, a de uma mulher em um barco navegando em um mar de cana de açúcar. Essa foi a imagem fundadora. E essa imagem também surgiu porque a Renata teve uma infância muito ligada à cana de açúcar. O engenho onde filmamos é da família dela, de um lado da família dela. E ela aprendeu toda aquela mitologia que vem [do cultivo] da cana de açúcar, que também é um elemento fundador do Brasil [...] O Brasil foi colonizado pela escravidão e o negócio da cana de açúcar foi o meio dessa colonização nefasta", conta Oliveira.
PASSADO/FUTURO/PRESENTE
Dentre as inúmeras tensões que impactam a trajetória de Bethânia em Açúcar, um dos embates mais proeminentes e interessantes certamente é aquele que se dá entre o passado e o futuro, tanto da personagem quanto do meio no qual ela tenta se inserir. Acreditando poder construir um amanhã melhor para si mesma na decadente casa-grande de sua família - e, possivelmente recuperar os dias de glória do "palacete", como deseja a madrinha Branca (Magali Biff) -, a protagonista acaba ficando presa entre as duas temporalidades.
Assim, por causa das feridas abertas e não solucionadas do passado, dos crimes cometidos na época em que a escravidão era o combustível da economia nacional, o futuro de Bethânia, nos dias de hoje, fica comprometido. E foi este choque que uniu tanto o peso dramático e o comentário político que Jinkings buscava na personagem: "O filme não alivia muito para a Bethânia, ela é sacudida. Eu sinto que ela desperta de uma certa dormência, no que diz respeito à sua própria história, e isso me interessava na personagem em termos da curva dramática. Falando do filme em si, Açúcar me interessa como obra que investiga, que tenta falar de uma ferida nossa, coletiva e social, ainda não curada, muito aberta ainda e que diz respeito às questões de classe, trabalhistas, mas especialmente às questões raciais. É uma negação de nós. Isso me interessa muito".
Do ponto de vista da direção e do roteiro, Pinheiro acredita que as mazelas do período colonial brasileiro se estendem até os tempos atuais. Inserido no filme, ora fora do quadro, ora fora de foco, o passado, não obstante, se faz presente e flui como um rio subterrâneo que desagua diretamente em Bethânia com a força de uma potente cachoeira.
Para os cineastas, é esta manifestação de uma anterioridade jamais superada pelo povo brasileiro - como lembra o antropólogo Darcy Ribeiro -, que impede que o Brasil cumpra seu potencial de "país do futuro". E Açúcar escancara, justamente, esta imobilidade perversa: "Se a gente não olhar para trás e tentar melhorar... A gente foi colonizado pela escravidão e isso se reproduz até hoje. O nosso filme é muito duro em algumas questões, mas tenho certeza que algumas pessoas vão se envergonhar porque vira e mexe a gente acaba cometendo algo grave porque fomos ensinados a reproduzir isso. Então, o país do futuro vai reproduzir isso [a escravidão], ele não vai para lugar nenhum. É preciso fazer uma revisão do que somos, é muito necessário e urgente", sacramenta Renata.
"Esse aforismo 'Brasil é o país do futuro' já revela aquilo que não deve ser revelado, o que está escondido, que é justamente o passado. Por exemplo, quando a escravidão foi 'abolida', queimaram-se todos os registros dos cartórios para esquecer aquele passado negro. O Brasil é o 'país do futuro' a partir da negação do passado, que não se extingue. O passado fica com a gente", completa Oliveira.
DUALIDADES
Além da dicotomia entre o que já foi e o que virá, outra dialética importante em Açúcar é aquela que opõe os Senhores aos Escravos. De maneira geral, segundo a filosofia do alemão Georg Hegel, um lado da equação só pode existir caso o outro também exista. Na teoria, o Brasil aboliu a escravidão. Todavia, o que se identifica é que os senhores continuam de pé - ou como Zé (José Maria Alves) afirma, as matas, lendas e mitos sumiram, mas as fundações dos antigos engenhos (e da opressão) permanecem lá. E é no meio desse contexto, que os realizadores de Açúcar declaram que seu drama reflete a nossa nação:
"O filme é um espelho do que somos, dos brasileiros, da nossa sociedade [...] É um filme que pode não agradar a todos porque é difícil você se olhar no espelho e ver o horror, entendeu? Acho que o cinema brasileiro também tem essa função, de fazer refletir e de mostrar o que somos [...] É uma grande crítica à elite brasileira, da classe média para cima, que é escravocrata, que são as pessoas que têm condição de mudar as coisas com um pouco mais de facilidade, talvez. Nosso filme fala disso: das pessoas que têm um certo poder e que poderiam, na verdade, melhorar as coisas", declara Pinheiro.
Oliveira, por sua vez, identifica resquícios da mentalidade escravocrata na obsessão brasileira pela limpeza como uma forma de apagar a memória negra: "O Brasil tem uma coisa muito forte com a limpeza, e isso é muito denunciador. Essa limpeza na verdade é você esconder a sua sujeira, do seu passado, da sua realidade, da sua vida atual. Tudo tem que ser muito limpo, tudo tem que estar espanado e isso é muito revelador em uma sociedade que já foi escravagista e que ainda permanece sendo".
DESLOCAMENTOS
Ao que tudo indica, não foi só o público presente na première de Açúcar, que se sentiu deslocado e afetado pelo tom de denúncia e pelo impacto simbólico do longa de Pinheiro e Oliveira. Segundo Jinkings e Morais, o processo de desenvolvimento de Açúcar, desde a fase das leituras do roteiro até a ilha de montagem, afetou suas convicções e concretizou mudanças em suas vidas.
Morais, que interpreta Alessandra, a empregada de Bethânia, conta que sua trajetória com o filme, principalmente no que tange à questão do movimento negro, foi marcado por muitas contradições interiores e subjetivas:
"Assim que li o roteiro, achei o máximo a minha personagem. Ela entrava no filme como um contraponto à personagem de Maeve, para bagunçar as coisas e deixar tudo de pernas para o ar. Gostei muito disso tudo quando recebi o roteiro. Mas há uns dois anos atrás [o filme foi rodado em 2014], comecei a pensar melhor sobre isso porque fui me tornando mais militante. Comecei a ler mais, escrever, me informar. E aí comecei a ver a minha personagem de outra forma. Que pode agradar, pode não agradar, mas que eu sei que vai gerar um debate. E quero estar nesse debate! O que mexeu com a minha alma é o que aconteceu depois que filmamos. É tudo que tenho descoberto como mulher negra, é tudo que eu tenho conversado com as pessoas e vendo que a personagem ficou muito legal, gostei muito do que aconteceu com ela. Defendo a minha personagem completamente. E defendo o filme também, apesar de fazer críticas".
Jinkings foi tocada pelo roteiro quando identificou pontos de convergência íntimos, políticos e muito profundos entre a caminhada de sua personagem e sua própria trajetória pessoal: "[Antes de ver o documentário A Negação do Brasil, sobre a subrepresentação negra na teledramaturgia nacional] Eu pensava de uma maneira muito mais limitada, em termos de escolhas políticas como atriz, do papel político que o ator tem em cada escolha que ele faz [...] O ator deixa uma contribuição sua para o imaginário coletivo. No audiovisual, não falo só com meu tempo: estou falando com outras gerações que virão [...] Quem me ensinou a potência política que tenho enquanto atriz foi o movimento negro, no instante em que esse movimento demanda uma representação mais justa. E quando Açúcar resolve meter o dedo na ferida, isso já me interessa imediatamente".
RESISTÊNCIA
Recentemente, um Projeto de Lei que visa proibir a "profanação" de símbolos religiosos foi desenvolvido pelo pastor e deputador Marco Feliciano, do Partido Social Cristão. O texto da proposta tem o objetivo de proibir a exibição ou apresentação de obras que atentem contra "todo e qualquer" credo. E ainda que o político, filiado à Assembleia de Deus, tenha declarado que não se trata de censura, os efeitos de interdições baseadas na "moral" já foram sentidas, por exemplo, por instalações artísticas no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, que foram completamente vetadas pelas prefeituras locais.
Uma vez que Açúcar aborda as raízes constitutivas da nação brasileira, seria impossível que Oliveira e Pinheiro evitassem trazer a questão da religião para o longa. Assim, tanto o candomblé quanto o catolicismo, e principalmente as contradições e embates entre os dois credos, estão presentes em Açúcar. Por isso mesmo, Sérgio não foge do debate e ressalta a importância dos protestos contra as deliberações políticas como a pretendida por Feliciano:
"O que a gente vê, principalmente nas religiões monoteístas, é o desrespeito contra as outras religiões que não são monoteístas. Isso vem acontecendo há mil anos. Acho isso [o Projeto] ridículo, acho ridículo [...] No caso do filme, quando Alessandra [Morais] se manifesta, em um momento que é precedido por uma reza católica de Branca e Bethânia, aquela é a única maneira dela de resistir culturalmente porque tudo é tolhido. A única maneira que ela tem de resistir é assim. Manifestação, no Nordeste, é usado quando a pessoa incorpora um espírito. E isso é muito relevador. É uma manifestação, não é uma possessão. Essa palavra traz em si alguma coisa".
"Eu acredito muito na resistência: bem-vindos à luta mais uma vez [...] A luta é maior do que essas pessoas ou políticos, que são passageiros. Eles não têm tamanho nenhum diante da imensidão disso tudo", finaliza Pinheiro.
Açúcar ainda não tem previsão de estreia no circuito comercial brasileiro.