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    Tudo que você precisa saber sobre Blade Runner, o Caçador de Andróides

    A história, as influências, a filosofia e a linha do tempo do noir futurista rumo a Blade Runner 2049.

    Culto tardio

    Três anos após o excelente Alien, o 8º Passageiro, o cineasta Ridley Scott voltaria aos cinemas com um projeto ainda mais ambicioso, articulando a ficção científica com elementos do film noir, reflexões sociais e questões filosóficas. Baseado no livro "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?", de Philip K. Dick, o filme seria uma adaptação original em diversos aspectos, e brilhante em suas particularidades. Mas tardaria até Blade Runner obter o devido reconhecimento.

    Orçado em US$28 milhões, o filme seria lançado duas semanas após o fenômeno E.T. - O Extraterrestre, de Steven Spielberg, e no mesmo dia de O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. O resultado foi uma arrecadação de apenas US$32 milhões nos Estados Unidos, resultando em prejuízo para a Warner Bros. — a maior responsável por esse fracasso. Nem tanto pela data de lançamento, no verão americano de 1982, mas principalmente pelo corte de Blade Runner que levou aos cinemas, atenuando a essência urgente e complexa da obra de Philip K. Dick ao inserir uma narração explicativa e um final feliz em belas paisagens (tomadas filmadas por Stanley Kubrick em O Iluminado) sem a anuência de Ridley Scott e concordância com o clima que permeia todo o filme.

    Um noir futurista

    A versão do diretor só seria conhecida dez anos depois, porém ainda sendo um lançamento de supervisão exclusiva do estúdio. O corte final de Ridley Scott foi lançado no aniversário de 25 anos de Blade Runner, em 2007. E é apenas nessa quarta e última versão (o filme foi aos cinemas internacionais com cenas de violência e nudez, cortadas para o público dos EUA), intitulada The Final Cut, que se pode apreciar toda a magnitude do filme, e como as suas influências foram bem pensadas.

    As principais inspirações na composição tecnológica de Blade Runner são a HQ francesa "Métal Hurlant" e o clássico sci-fi Metrópolis, de Fritz Lang. Na operação de sua trama policial, Ridley Scott teve a grande sacada de se inspirar no film noir, se apropriando das características visuais do subgênero, como a severidade das sombras, fotografia de alto contraste, ângulos não convencionais e até mesmo o clichê das persianas venezianas. O voice over usado na versão dos cinemas é outra tipicidade do cinema noir, porém aqui utilizado de maneira equivocada, simplista.

    A conjunção pioneira de Blade Runner resulta em um filme esteticamente soberbo, com seu visual retrofit (vide televisores de tubo adaptados como computadores de ponta) evocando com perfeição o paradoxo de um futuro decadente. Nasce, assim, um expoente do movimento cyberpunk, servindo como influência para obras em diversas mídias: o anime Ghost in the Shell, a série Battlestar Galactica, os filmes Estranhos Prazeres, GattacaMatrix e muitos outros, inclusive videogames.

    A moralidade de Blade Runner

    A principal contribuição do film noir em Blade Runner é temática. A moralidade que multidimensiona os personagens, o bem e o mal, serve perfeitamente à questão crítica proposta por Philip K. Dick. Os antagonistas são seres aos quais são atribuídos inteligência, consciência, memória e, entre outros, um medo de morrer que evoca o sentimento mais básico do ser humano: o instinto de sobrevivência. Roy Batty e os outros replicantes da série Nexus 6 trilham um caminho sangrento para aumentar sua longevidade, de apenas quatro anos. Isso gera inevitável empatia pelo objetivo dos vilões do filme.

    Essa trama complexa invoca um entendimento do cinema noir como "filmes de morte", com este componente trágico atuando de maneira marcante e muitas vezes sendo resultante das jornadas tortuosas de seus personagens. Em Blade Runner, curiosamente, a morte é contraponto direto da busca de seus antagonistas pela vida. O que acentua a beleza de seu final memorável, marcado por um monólogo incrível e talvez a melhor improvisação da história do cinema, por Rutger Hauer:

    Eu vi coisas que vocês humanos nunca acreditariam. Ataquei naves em chamas nas bordas de Orion. Observei Raios-C brilharem na escuridão dos ares dos Portões de Tannhauser. Todos estes momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva: hora de morrer.

    A declaração de Roy Batty é uma reflexão sobre a vida e sua liquidez, definindo a existência como um conjunto de memórias que se esvai no momento da morte. O tom solene de seu epitáfio transforma em poema a paixão do replicante pela vida — um respeito tamanho que justifica a grande reviravolta do desfecho do filme: diante de sua morte inevitável, ele salva a vida em suas mãos, mesmo sendo a de seu inimigo, o policial Rick Deckard, cuja missão é caçar andróides e ao próprio Roy. Tamanho esclarecimento moral é a prova real de que a maior ambição do Dr. Eldon Tyrell (Joe Turkel) deu certo: fazer robôs "mais humanos que os humanos".

    Deckard, um replicante

    A outra grande mudança realizada pela Warner Bros. na versão dos cinemas de Blade Runner foi a sugestão de que Deckard é um replicante. Pela reunião de duas sequências deletadas: quando o policial sonha com um unicórnio (figura mitológica que simboliza milagre — tal como criar robôs iguais a seres humanos); e quando Gaff (Edward James Olmos) revela conhecimento da relação amorosa entre Deckard e a replicante Rachael, o agente vai ao encontro de sua amada, a encontra viva e, antes da fuga, o origami de um unicórnio na saída do apartamento. Assim, fica implícito que os sonhos de Deckard são memórias implantadas artificialmente, e Gaff tem conhecimento delas, além de piedade pelos andróides que estão ao seu lado. Anos depois, Ridley Scott explicitou que a interpretação é correta.

    A Warner, portanto, preferia uma definição mais simplória: os humanos são o bem, os replicantes são o mal. A versão de Ridley Scott é livre de maniqueísmo, ácida sobre a condição humana e questiona essa moral relativa que se permite sobrepujar cruelmente outras espécies (como o abate cruel de animais para fins de consumo) ou mesmo a própria raça: seja no massacre dos habitantes nativos (como os índios) na história das colonizações, seja na escravização dos povos, seja nas variações modernas de discriminação, como o racismo, a misoginia, a homofobia, a xenofobia etc.

    A reviravolta sobre a identidade de Deckard, em todo o contexto, é como um manifesto sobre empatia. No início do filme, antes de aplicar o teste Voight-Kampff em Rachael e descobrir que ela é replicante, o protagonista é questionado sobre sua atuação profissional. Em se justificar dizendo que não se incomoda com andróides que não causam problemas (um discurso que combina com o de conservadores que lembram com nostalgia da ditadura, pois "cidadão de bem não sofria repressão"), Deckard revela uma moralidade bem comum entre forças do Estado, especialmente no caso de policiais mais truculentos, que usam desse expediente para se blindar eticamente e controlar violentamente quem enxerga como diferente. "Você já aposentou um humano por engano?", indaga Rachael, complementando a discussão complexa com outro questionamento, ao justiçamento. Em outras palavras, é a replicante (sem sabê-lo, porém "mais humana que um humano") apontando a inevitabilidade da injustiça quando se combate suspeitos de forma letal e a presunção de inocência se torna secundária.

    A expressão de Deckard ao fim de seu confronto com Roy, após ser salvo por seu inimigo replicante, é um prenúncio ainda maior de sua mudança de comportamento em relação aos androides do que sua relação com Rachael. A revelação de quem também ele é um ser robótico representa mais que a moral do filme, servindo como lição de moral para o protagonista. 

     

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