O diretor Cacá Diegues tem uma vida inteira associada ao cinema brasileiro - "desde os 18 ou 19 anos", ele lembra. Desde então, o cineasta de 77 anos de idade comandou alguns dos maiores clássicos da nossa cinematografia: Joana Francesa (1973), Xica da Silva (1976), Bye Bye Brasil (1979), Tieta do Agreste (1996), Orfeu (1999), Deus é Brasileiro (2003)... Atualmente, finaliza um novo filme, O Grande Circo Místico.
O artista é tema de uma grande retrospectiva, no cinema Caixa Belas Artes, em São Paulo, entre os dias 7 e 20 de setembro. A mostra Cacá Diegues - Cineasta do Brasil trará todos os filmes do diretor alagoano, incluindo longas-metragens e curtas-metragens, além de uma master class com o cineasta.
O AdoroCinema conversou com ele sobre o cinema brasileiro atual:
Como percebe a evolução de seu trabalho, desde os anos 1960?
Cacá Diegues: Eu não vejo muito os meus filmes depois que são feitos. Enquanto estou fazendo, tenho que ver muito, é claro, mas depois não tenho o costume de ver mais. Por isso, fica difícil refletir sobre o que fiz antes. Mas sempre faço filmes sobre o presente, não penso no passado, nem no futuro. Faço algo que possa interessar aos meus contemporâneos. Os temas são sempre escolhidos de acordo com o momento em que são feitos. Não estou realmente preocupado com a evolução pessoal como cineasta, o que me interessa é falar sobre o Estado do mundo em que vivo.
Poucos diretores conseguem produzir de maneira tão regular, durante tanto tempo.
Cacá Diegues: É por causa do meu esforço, meu empenho. Eu adoro fazer cinema. Gosto muito de todas as etapas, até mesmo procurar dinheiro, porque sei que isso faz parte da minha vida. Procurar dinheiro não é uma coisa que me desgasta muito. Então eu gosto de cuidar de tudo, desde a preparação até a filmagem e o lançamento. Sempre trabalhei no cinema com muito prazer, e isso permitiu que as coisas acontecessem. Para mim, a primeira razão é o meu empenho. Ao mesmo tempo, não posso me subestimar: sei que continuei fazendo filmes porque muitos deles tiveram sucesso. Uma coisa leva à outra.
Como percebe a evolução do cinema brasileiro como indústria?
Cacá Diegues: Estou no cinema desde que tenho 18, 19 anos, faz mais de 50 anos. Não só no tempo que vivi mas de modo geral, posso dizer que estamos vivendo uma época de ouro. É um momento em que o cinema brasileiro se torna uma atividade permanente no país. Produzimos cerca de 150 filmes por ano, algo nunca antes visto, com diversidade regional e de temas incrível. É claro que com o número maior de produções, teremos mais filmes ruins também. Mas de qualquer maneira, esta é a melhor época para o nosso cinema, por causa dos jovens cineastas que estão estreando. Esse momento prova que o cinema brasileiro existe e deve existir. Hoje a economia está entregue aos distribuidores, e nem sempre eles agem corretamente em relação aos filmes.
Qual seria a solução? Recorrer a medidas do governo, reforçar a cota de tela?
Cacá Diegues: Cota de tela para o cinema brasileiro [obrigação legal dos cinemas de exibirem filmes nacionais durante determinado número de dias no ano] é algo inevitável, indispensável. Mas não penso em cercear a produção. Precisamos de políticas de distribuição mesmo, não cabe a eles escolher quais filmes vão dar certo e fazer dinheiro. Precisamos de uma visão mais generosa com o nosso cinema. O distribuidor competente vai fazer o filme alcançar o público ao qual foi destinado, mas isso não acontece atualmente porque não estamos interessados. Esse problema não pode ser corrigido com nenhuma lei, não tem governo nenhum que arrume. Tem que fazer a cabeça dos distribuidores, inclusive pela via dos produtores.
2017 tem sido um ano desfavorável ao cinema nacional. Produções de porte considerável como O Filme da Minha Vida, Malasartes e o Duelo Com a Morte e Bingo - O Rei das Manhãs tiveram uma bilheteria muito abaixo do esperado. Como vê a conjuntura atual?
Cacá Diegues: São duas questões: uma é supra estrutural, da distribuição mesmo. A outra é infra estrutural, diz respeito à crise política, econômica e ética que transformou a realidade brasileira num inimigo. Nossa autoestima acabou, as pessoas recusam tudo que é produto brasileiro. Essa autoestima está sobretudo na classe média que vai ao cinema. Filmes que não dão certo nas bilheterias depois funcionam bem na TV, viram um sucesso extraordinário, e isso acontece com frequência cada vez maior porque o público não é o mesmo.
A questão não é tanto que o espectador recusa o cinema brasileiro, é que ele não está indo ao cinema de modo geral. Quem vai é a classe média alta, que paga pipoca caríssima, a Coca-Cola mais cara do mundo, o estacionamento caro e depois escolhe o blockbuster americano. Essa é a recusa de entender o nosso país, o nosso cotidiano. Por menos que você analise o que está acontecendo na tela, ainda é um filme brasileiro, ele reproduz uma vida que essas pessoas não querem ver. A queda nas bilheterias é consequência natural disso. Mas é importante lembrar que o filme médio americano também tem resultados fracos nas bilheterias. Agora só dá certo Mulher-Maravilha, porque o público que ia várias vezes ao cinema agora só escolhe um filme para ver por mês.
Qual é o papel dos festivais de cinema neste contexto?
Cacá Diegues: Eles são muito importantes. Hoje em dia você tem no mundo inteiro, com exceção dos Estados Unidos, três formas de cinema ocupando o mercado: o primeiro é o americano, que encontrou uma linha de conteúdo que agrada o mundo inteiro, da China à Coreia, da Europa à América do Sul. Tem o cinema nacional, que reage a isso. Ele se concentra principalmente na comédia, capaz de absorver os temas locais, mas que não viaja para para outros países porque não é compreensível em outros lugares. Minha Mãe é Uma Peça jamais vai funcionar fora daqui, na França, por exemplo. São filmes domésticos.
Existe um terceiro cinema, que tenta abrir portas a novas formas de fazer cinema, de narrar e contar uma história. São filmes de alto risco, e são esses que circulam em festivais. Os festivais são os centros de difusão deste terceiro cinema que existe no mundo inteiro. Tem Abbas Kiarostami no Irã, que é sucesso nos festivais, mas não passa no mundo inteiro comercialmente porque é uma forma de cinema arrojada. É um cinema indispensável.
Quando vamos ver O Grande Circo Místico nos cinemas?
Cacá Diegues: Esse filme é o maior problema que eu tive, é o mais difícil que fiz na vida. Tive problemas de falta de dinheiro, problemas técnicos... Primeiro eu queria fazer o filme no Brasil, mas pelo tema não deu, então precisei fazer em Portugal, porque não era possível usar animais aqui. E como falar de circo naquela época sem animais? Tive outros problemas, como o financiamento prometido que nunca chegava, até os produtores portugueses ajudarem. Depois tive problemas com a técnica de efeitos especiais, que nunca ficavam do jeito que eu queria. Mas o filme deve ficar prontinho em outubro. Não vou lançar no fim do ano, porque não faria sentido. Mas deve ser em 2018.
Quais são os próximos projetos em vista? Fala-se sobre a biografia da Hebe Camargo, que você teria abandonado.
Cacá Diegues: Na verdade, eu nunca disse que ia fazer o filme da Hebe. Fui convidado para ele, mas nunca confirmei o trabalho, e nem estava interessado para falar a verdade, embora ache que o projeto tem potencial. Antes, eu preciso acabar o Grande Circo Místico para me empenhar em outros projetos. Tenho duas ou três ou quatro ideias em mente, mas isso fica para depois.