"Vamos manter vivos os nossos filmes", conclamou Patrícia Civelli após uma fala muito aplaudida antes da sessão do filme É Um Caso de Polícia! (1959), uma doce (re)descoberta que abriu a Mostra Preservação na 12ª Cine OP na noite do último domingo (25).
Patrícia é sobrinha da diretora do longa-metragem, Carla Civelli (1921 - 1977), pioneira cineasta ítalo-brasileira cuja importância para o desenvolvimento do cinema e da televisão no país foi relegada ao varrida para debaixo do tapete por muitos anos. É Um Caso de Polícia! passou décadas no esquecimento e muitos acreditavam que o filme integrava a longa e triste lista de trabalhos perdidos da história do audiovisual brasileiro. Acredita-se que cerca de 40% dos filmes já produzidos no país já não existam mais.
Rodado entre 1958 e 1959, o filme marcou a primeira e única experiência de Carla como diretora de um longa-metragem e, por algum motivo misterioso, apesar de sua evidente qualidade, nunca chegou ao circuito comercial de salas de cinema no Brasil. Além disso, o trabalho é um raro exemplo de filme brasileiro dos anos 50 dirigido e estrelado por mulheres, o que sublinha mais uma vez a importância do resgate deste longa em um momento em que se visa debater, valorizar e incentivar a presença feminina na produção de bens culturais cinematográficos.
Já na ficha técnica do longa-metragem se percebe um pouco do valor do filme. Trata-se do primeiro trabalho do dramaturgo Dias Gomes (1922- 1999) como roteirista de cinema. Gomes se envolveu no projeto no mesmo ano em que a peça O Pagador de Promessas foi encenada nos teatros. Em 1960, Anselmo Duarte adaptou a obra para os cinemas e o filme homônimo se tornou o único filme brasileiro a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes e primeiro filme nacional a ser indicado ao Oscar.
O filme marca ainda a estreia de Glauce Rocha (1930 - 1971) como protagonista de um longa-metragem. Posteriormente, a atriz que também deixou sua marca no teatro e na televisão, atuou em filmes fundamentais como Cinco Vezes Favela (1962), Os Cafajestes (1962), Terra em Transe (1967) e A Navalha na Carne (1970). Cláudio Corrêa e Castro (1928 - 2005), presença proeminente nas telenovelas brasileiras por quase quatro décadas, estreou diante das câmeras em É Um Caso de Polícia!.
"Esse filme ficou 20 anos guardado no armário dela [Carla]. Quando ela morreu, os negativos originais pegaram fogo. A gente fez a preservação através de uma cópia que foi encontrada mais de 40 anos depois", contou Patrícia, que também luta para manter viva a memória da produção do pai, o cineasta Mario Civelli.
É Um Caso de Polícia! é uma divertida comédia de erros com que dialoga com as chanchadas e flerta ironicamente com o thriller. Ao longo da sessão, o público reagiu com intensas risadas. No filme, Glauce é uma jovem de 20 e poucos anos de classe média carioca chamada Belinha. Ela nutre uma obsessão nada saudável por folhetins sensacionalistas que trazem casos de assassinatos, linchamentos e outros crimes violentos em suas manchetes.
O apego exagerado de Belinha por tabloides policiais faz com que ela tente se previnir de ser vítima deles e até mesmo se empenhar para evitá-los. É o que acontece quando, numa manhã de lazer ao lado de seu noivo Godofredo (Sebastião Vasconcelos, 1927 - 2013), a moça entreouve um papo muito suspeito entre dois homens que dizem planejar um assassinato.
Daí em diante, o roteiro de Gomes investe no desenrolar de uma série de eventos, por vezes burlescos, mas sempre dotados de uma comicidade ingênua e autêntica. A dinâmica das reviravoltas e peripécias do filme é amplificada pela competente direção de Carla Civelli, que mostra muita destreza em sua estreia como realizadora e um domínio formal muito rigoroso da linguagem cinematográfica. Vale destacar ainda o trabalho de montagem que sabe dar o dinamismo que uma comédia precisa ter e a direção de fotografia que demonstra domínio do uso da luz e sombra na criação de contrastes que evocam a atmosfera noir.
Em relação à construção da personagem feminina, Belinha é apresentada como uma pessoa impulsiva sim, mas ela não é representada como uma desvairada. Além do mais, o filme sugere que boa parte de sua preocupação com a violência está relacionada com uma série de assassinatos de mulheres cometidos por seus companheiros que são noticiados nos jornais. Ah, e o filme passa no teste de Bechdel.
É Um Caso de Polícia! também é um importante registro da memória imagética da cidade do Rio de Janeiro. Várias cenas têm grande valor documental, como as que mostram uma desértica e pouco habitada praia de Ipanema, além de outros ambientes urbanos cariocas que passaram por muitas transformações ao longo das décadas nos bairros da Gávea, São Conrado, Laranjeiras e Leblon. Há ainda uma tomada que exibe o morro da Rocinha antes do estabelecimento daquela que hoje é a maior favela do Brasil.
Por conta desses registros, causou espanto que o descaso da prefeitura da capital fluminense teve em relação ao longa-metragem. "O filme teve um pedido de restauração indeferido, negado, por uma comissão municipal de incentivo à cultura no Rio de Janeiro. O motivo alegado, segundo o laudo que recebemos, foi que 'a diretora é desconhecida de seus pares, portanto o filme não deve ser preservado'", contou Patrícia.
Para recorrer à decisão, a sobrinha da cineasta coletou depoimentos de "ilustres desconhecidos", como ela mesma disse em tom irônico, que fizeram um abaixo assinado sobre a Carla Civelli e ressaltaram a importância e o pioneirismo da diretora. Participaram nomes como Hugo Carvana, Ítalo Rossi, Nicette Bruno, Paulo Goulart e Paulo Autran.
O filme foi recuperado por Francisco Sérgio Moreira (1952-2016), pioneiro montador, restaurador, pesquisador e conservador do cinema brasileiro. Posteriormente, foi digitalizado pela Teleimage. Em 2016, foi exibido no Festival do Rio. Agora, além de ser um importante registro histórico e um longa capaz de entreter o público quase 60 anos depois da época na qual foi idealizado, É Um Caso de Polícia! é um testamento da obra de Carla Civelli, cuja importância volta à superfície.
Antes de chegar ao Brasil, em 1947, Civelli chegou a trabalhar com o celebrado Luchino Visconti na Itália. Por aqui, foi diretora do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia); montou O Caiçara (1951), primeiro filme do estúdio Vera Cruz, que já foi o maior do país; e foi a primeira mulher diretora de teleteatro e novela em atrações das extintas TV Tupi e TV Rio.
*O AdoroCinema viajou para Ouro Preto a convite da CineOP