O segundo dia de sessões da 12ª CineOP levou discussões sobre identidade, memória e resistência para as ladeiras da cidade histórica de Ouro Preto na última sexta-feira (23).
Pioneiros do cinema negro
Anunciado como um dos principais destaques da mostra histórica deste ano, a sessão de Um é Pouco, Dois é Bom (1970) resgatou a importância de um nome pioneiro que muitas vezes não ganha o destaque merecido na historiografia do audiovisual brasileiro. Com direção de Odilon Lopez, a obra dividida em dois episódios autônomos, intitulados Com um pouquinho de sorte e Vida nova por acaso.
Calcado em cima de uma ambientação urbana do Rio Grande do Sul — em contraste com o proeminência do chamado "cinema de bombachas", sobre a realidade rural gaúcha — Um é Pouco, Dois é Bom foi o primeiro longa-metragem de ficção no Brasil a contar com um realizador negro responsável por múlitplas funções importantes na feição cinematográfica. Lopez é o idealizador do projeto, autor do argumento, produtor, um dos atores principais e diretor do filme.
Com diálogos escritos por Luiz Fernando Veríssimo, ambos os episódios se centram em histórias que envolvem comentários sociais e mostram planos gerais do espaço urbano, mas sem idealizações cosmopolitas. Pobreza, marginzalização e racismo são alguns dos temas abordados, mas o caráter de crítica social é sutil e transversal.
Outro filme exibido na mostra histórica que resgata os primeiros baluartes negros do cinema nacional foi o curta Aniceto do Império, Em Dia de Alforria...? (1981), de Zózimo Bulbul, que começou sua carreira como realizador três anos depois de Um é Pouco, Dois é Bom no importante curta-metragem Alma no Olho (1973). Antes disso, Zózimo já era um dos principais expoentes negros do Cinema Novo, com atuações em Cinco Vezes Favela (1962), Ganga Zumba (1963), Terra em Transe (1967) e Jardim de Guerra (1970) e posteriormente também se firmou como ator de TV.
Com um discurso político bastante frontal, em comparação com o que foi apresentado em Um é Pouco, Dois é Bom, o curta-metragem documental Dia de Alforria acompanha a figura magnética de Aniceto de Menezes e Silva Júnior, o Aniceto do Império, um dos fundadores da escola de samba Império Serrano, do Rio de Janeiro. "Filme dedicado a Zumbi dos Palmares e todos os quilombolas mortos e vivos", diz a cartela que ganha a tela nos créditos iniciais do curta, que exalta a consciência e a criatividade do sambista, sua ligação com à tradição afro-brasileira e sua atuação como líder sindical na zona portuária carioca. Um dos destaques é a emocionante cena em que Aniceto olha para os céus e se orgulha da composição do partido alto "Eu Sou Raíz"
Discursos sobre "o outro"
Também na última sexta-feira (23), a mostra histórica ganhou uma sessão tripla com dois curtas e um média metragem que apresentam diferentes olhares para povos indígenas. A sessão se conecta muito bem com o mote principal dos debates propostos na CineOP deste ano: "Quem conta a história?".
Rituais e Festas Borôro (1917), do Major Luiz Thomaz Reis, Kuarup (1962), de Heinz Forthmann, e Mato eles? (1985), de Sérgio Bianchi, formaram uma trinca de filmes que, quando exibidos em sequência, apresentam um panorama da produção audiovisual brasileira sobre os povos originários do Brasil e explicitam algumas das contradições de suas propostas.
Enquanto Rituais e Festas Borôro e Kuarup, apresentam um viés etnográfico forte, mas ideologicamente questionável (o índio é sempre "o outro", "o selvagem"), as obras tem claro valor documental por conta da riqueza e beleza estética de suas imagens. Já o excelente Mato eles?, com arrisca — e acerta — um tom de humor negro para realizar um documentário experimental que mescla registros reais e ficcionais para mostrar como o descaso da Funai com três comunidades indígenas permitiu que fosse implantada uma madereira numa área demarcada com uso de mão de obra nativa e barata. Corrosivamente inquieto, o filme articula uma série de perguntas (inclusive a emblemática questão que dá nome à obra) que não precisam de respostas objetivas, mas sim de reflexão. Há em Mato eles? espaço ainda para assumir um comentário crítico quanto à nobreza (ou falta de) da própria experiência de produção documental comandada por não-indígenas envolvendo a questão indígena. Ressoa por muito tempo a cena em que um cacique guarani pergunta a Bianchi quanto ele ganha para fazer o filme.
No cinema a céu aberto na Praça Tiradentes, foi exibido ainda o longa-metragem documental Martírio, dirigido por Vincent Carelli, idealizador do projeto Vídeo nas Aldeias, ação homenageada nesta edição da CineOP.
Exibido no Festival de Brasília e na Mostra de Tiradentes (e eleito um dos melhores documentários brasileiros de todos os tempos pela Abraccine), o filme de quase três horas de duração apresenta a luta por território e sobrevivência do povo Guarani-Kaiowá ao longo de séculos.
"A universalidade do luto é um recurso utilizado pelo filme para cativar a atenção e empatia do espectador, afinal, em um filme sobre genocídio a morte nunca seria apenas coadjuvante. São inúmeros os depoimentos de indígenas que perderam, pai, mãe, filhos, sobrinhos, irmãos e irmãs. É impossível não se emocionar com o desespero de uma sobrinha no funeral do tio assassinado à mando de fazendeiros. Em um momento tocante, uma indígena mais idosa chora copiosamente ao lembrar das indignidades à qual sua comunidade foi submetida e escuta uma frase que sintetiza o caráter de luta e coragem que permeia a obra: 'Tente ser forte. Você tem que falar'", diz a matéria publicada no AdoroCinema sobre o filme na ocasião da 20ª Mostra de Tiradentes.
Fragmentos de memória
Na mostra homenagem, foram exibidos dois típicos "filmes de montagem", o curta A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha (1998), de Carlos Adriano, e o média Já Visto, Jamais Visto (2013), de Andrea Tonacci. Ambos os trabalhos tiveram como montadora Cristina Amaral, também homenageada nesta edição da CineOP.
"Foram dois filmes nos quais eu aprendi muito. Foram filmes que me exigiram muito. Essa é a melhor coisa que pode acontecer para a gente profissionalmente. São trabalhos que tiram da zona de conforto e deixam você pisando na beira do abismo", comentou Amaral antes da sessão no Cine Vila Rica. Ao tomar a palavra para celebrar a vida e o trabalho da colega, Adriano destacou que A Voz e o Vazio foi o único dentre os 15 trabalhos de sua filmografia no qual ele não acumulou a função de editor. "Já falei isso: Sempre que eu não puder montar, só ela pode botar a mão no meu filme".
A Voz e o Vazio firma-se como um exótico ensaio documental sobre o sambista paulistano (1923-1942), figura que teve uma carreira relâmpago e morreu aos 19 anos de idade, deixando raríssimos regristros gravados. Imageticamente, o curta se constitui através da sequência e justaposição de recortes de jornais que quase nunca podem ser lidos completamente, aparecendo e desvanecendo na tela, como memórias que ressurgem por breves momentos prestes a serem esquecidas novamente. O trabalho excepcional de montagem feito por Amaral é eficiente na manipulação do tempo e das emoções, criando até tensão e momentos de quase espanto neste trabalho assumidamente experimental.
Também dotado de uma radicalidade conceitual, Já Visto, Jamais Visto, último filme de Andrea Tonacci (1944 - 2016), é um registro elíptico, enigmático e quase esotérico. Repleto de texturas (com cenas filmadas em 8mm, 16mm, 35mm), arestas e lacunas, o longa propõe um arenoso passeio mental pelas memórias fílmicas de Tonacci. O filme é composto por cenas que integram o acervo pessoal do cineasta, trechos de filmes conhecidos que foram finalizados, trechos de obras nunca terminadas que passaram anos longe dos olhos do público e vídeos caseiros de Tonacci com sua família (a relação entre pai e filho recebe atenção especial).
*O AdoroCinema viajou para Ouro Preto a convite da CineOP