Ah, o feriado de Corpus Christi! Para os católicos praticantes no Brasil, a data instituída no calendário religioso pelo Papa Urbano IV no século XIII para celebrar o sacramento da Eucaristia é um dia confecionar tapetes coloridos pelas ruas da cidade e participar de procissões.
Entretanto, na vida nem tudo pode ser comunhão, vinho e pão. Nesta quinta-feira (15) de Corpus Christi o AdoroCinema listou alguns filmes que testaram os limites da tolerância do público religioso ao levar para a sétima arte visões cheias de liberdades criativas, contestadoras, controversas, satíricas e, definitivamente, polêmicas de eventos narrados na Bíblia.
Alguns dos filmes geraram debates, causaram manifestações intensas — e por vezes até violentas — e foram proibidos em diversos países quando lançados.
A Paixão de Cristo (The Passion of the Christ, 2004)
Com doses de sangue falso dignas de filmes de terror ou filmes de Quentin Tarantino, o ator Mel Gibson apresentou em A Paixão de Cristo seu projeto mais controverso como cineasta, com a proposta de examinar as tortuosas 12 horas que antecederam a crucificação de Jesus Cristo. Baseado nos Evangelhos, na Tanakh e nas visões de uma freira do século XVIII, os diálogos do filme são falados predominantemente em aramaico, em latim e em hebraico.
Antes mesmo de seu lançamento, o filme penou para encontrar uma distribuidora porque muitos executivos consideraram o filme antissemita por supostamente culpar de forma exacerbada os judeus pela morte de Cristo, especialmente por conta da maneira que foi retratado o sumo sacerdote Caifás. O tema foi amplamente noticiado e debatido por jornais e após uma série de altercações com a imprensa, Gibson foi pego dizendo que queria "matar" um jornalista do jornal The New York Times após o veículo publicar uma matéria contra o filme. "Eu quero os intestinos dele num espeto. Eu quero matar esse cachorro".
O uso da violência, com cenas visualmente explícitas sobre a tortura e morte de Jesus, também gerou controvérsia e alguns críticos compararam o filme com snuffs e filmes de terror. Sobre as cenas fortes, Gibson disse que sua intenção era realizar algo "extremo" e "chocante" para representar a "grandiosidade daquele sacrifício".
Gibson apostou no marketing junto a igrejas e, mesmo o filme sendo proibido para menores de 16 anos, A Paixão de Cristo se tornou o filme de temática cristã de maior bilheteria nos Estados Unidos em todos os tempos. No mundo inteiro, a obra arrecadou US$ 611 milhões.
Eu Vos Saúdo, Maria (Je Vous Salue, Marie, 1985)
Certamente o filme mais comentado de Jean Luc Godard após seu auge criativo nos anos de 1960, Eu Vos Saúdo, Maria apresenta uma versão moderna e desglamurizada da história de Maria (Myriem Roussel), retratada aqui como uma estudante francesa. Quando conta para seu namorado José (Thierry Rode) que está grávida milagrosamente, o homem ameaça deixá-la, mas é impedido por Gabriel (Philippe Lacoste).
Repleto de cenas de nudez frontal de Maria, o filme examina as dicotomias entre matéria e espírito, um homem e uma mulher, e foi alvo de protestos em diversos países. Durante o Festival de Cannes, Godard chegou a ser atacado e receber uma torta na cara por um homem descontente com o filme. O papa João Paulo II alegou que a obra "fere profundamente os sentimentos dos fiéis" e chegou a rezar um terço na Rádio do Vaticano para "reparar a ofensa feita a Nossa Senhora". Na França, representantes de grupos católicos conseguiram invadir um cinema e roubar a película do filme.
No Brasil, o filme foi censurado pelo governo do presidente José Sarney. O caso, na época, dividiu a MPB. O cantor Roberto Carlos enviou um telegrama para o então presidente aprovando a ação do chefe de estado e dizendo que Eu Vos Saúdo, Maria "não é obra de arte ou expressão cultural que mereça a liberdade de atingir a tradição religiosa de nosso povo e o sentimento cristão da Humanidade". Em um artigo no jornal Folha de S. Paulo, Caetano Veloso retrucou, disparou contra a "burrice de Roberto Carlos" e pediu: "Vamos manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam."
A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation Of Christ, 1988)
Desde a infância, Martin Scorsese, que foi criado em um ambiente de devoção à fé católica, quis realizar um filme sobre Jesus Cristo. Em 1988, o diretor alcançou o seu objetivo — e irritou muita gente que não estava disposta a dar a outra face.
Baseado no igualmente polêmico romance homônimo de Níkos Kazantzákis, A Última Tentação de Cristo mostra o que acontece quando Jesus de Nazaré (Willem Dafoe), enquanto é martirizado na cruz, imagina como seria sua vida terrena como um homem comum, que não carrega o peso de um sacrifício que salvará a humanidade. Jesus é mostrado como alguém que tem dúvidas, medos, angústia e momentos de depressão. O messias se casa com Maria Madalena e tem muitos filhos e Scorsese não hesitou em filmar uma cena em que Cristo e a mulher salva do apedrejamento consumam o matrimônio.
Mesmo com Scorsese explicitando que não fez um filme baseado na narrativa dos evangelhos, o longa foi alvo de protestos antes mesmo de ficar pronto. Centenas de pessoas foram aos estúdios da Universal para fazer piquete contra a produção, movidos por sermões calorosos de ministros protestantes e católicos. O líder evangélico Bill Bright chegou a dar uma oferta pelo negativo do filme, que desejava comprar e destruir. Em Paris, um grupo fundamentalista católico atacou um cinema onde seria exibido o filme com coquetéis molotov. O ato deixou 13 feridos, sendo quatro deles em estado grave.
Noé (Noah, 2014)
A Paramount Pictures tinha muitas ressalvas com a produção de Noé e chegou a pedir três versões diferentes para os montadores do filme, medida que não recebeu a aprovação do diretor Darren Aronofsky e só chegou ao conhecimento dele tempos depois. Em sessões-teste, nenhuma delas agradou plenamente o público cristão e o motivo foi a distância entre o enredo do longa-metragem estrelado por Russel Crowe e o relato clássico conhecido no livro bíblico de Gênesis.
Teologicamente, Noé irritou alguns grupos cristãos por não mencionar Deus pelo nome, referindo-se a Ele apenas como "O Criador" e por utilizar referências ao Livro de Enoque, obra que está fora do cânone bíblico. Houve ainda religiosos que se incomodaram com a redenção dos anjos caídos no final do filme. O longa ainda foi censurado em diversos países com população majoritariamente islâmica, como Bahrein, Qatar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Malásia e Indonésia, porque Noé é considerado um profeta para os muçulmanos e representações visuais dessas figuras são proibidas. spoiler: