Choveu em São Luís, mas a temperatura continuou alta e na tela do lotado Teatro Alcione Nazaré corpos, muitos corpos, vestidos, nus, quebrados, foram projetados. Mas era um único corpo, especificamente uma mente, que atraía as atenções nas exibições de quinta-feira. A casa cheia era para torcer pelo representante do Maranhão na competição de longas. Frederico Machado, que ganhou tudo e mais um pouco no Festival Guarnicê 2014 com O Exercício do Caos e três prêmios ano passado com O Signo das Tetas, retornou para apresentar Lamparina da Aurora – um intervalo antes de As Órbitas da Água, que encerrará a trilogia composta pelos anteriores. Machado chamou ao palco parte da equipe do filme, realizado no esquema cinema de guerrilha e sem verba nenhuma ao lado de alunos da Escola Lume de Cinema, e deixou dedicatória à mãe Arlete Nogueira da Cruz, poetisa. Pouco antes ocorreram as únicas gargalhadas da noite, quando o responsável pela caracterização de Lamparina, estreando no cinema, disse que recebeu convite para fazer um tal filme do Fred, cheio de sangue, e aceitou acreditando tratar-se de uma produção de Freddy Krueger...
As Ondas, de Juliano Gomes e Léo Bittencourt – “Como é o corpo das coisas que não somos nós mesmos?” foi a pergunta que levou ao filme de acordo com Juliano. Assim como ondas vêm e vão, As Ondas promete ser interessante também visto de trás para frente, pois começa com agradecimentos (geralmente listados no final) e tem cenas próximas e impactantes nas duas extremidades. O meio é uma viagem, com estátuas, manequins, sombras, lâmpadas e fogo confinados na tela quadrada. Há uma progressão, mas é suficiente deixar-se levar pelo som e pela luz, como a bordo de uma embarcação à deriva no mar pouco iluminado da organização do discurso.
Luiza, de Caio Baú – Luiza namora há anos, pinta o cabelo de azul, é tema de documentário, mas não pode transar. É tema de documentário por não poder transar. Num delicado e relevante registro familiar, Caio aborda a enorme dificuldade dos pais no trato com a sexualidade da jovem deficiente. Encerrado de forma abrupta, apesar de divertida, Luiza é um caso raro de curta que deveria ser maior. Seria bacana a grande interessada ser questionada pelo realizador a respeito do relacionamento, além da bateria inicial de perguntas que apenas serve para ressaltar sua condição; e as falas da avó durante os créditos acabaram abafadas na exibição pelas palmas da plateia.
Autopsia, de Mariana Barreiros – “Não há cultura de estupro no Brasil”, teve a cara de pau de afirmar o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) em reunião da Comissão dos Direitos Humanos há cerca de um ano. Será que ele não tem televisão, internet ou rádio? Se fosse o caso, o revoltante trabalho de Mariana poderia ajudá-lo a abrir os olhos e ouvidos. Ela reúne o pior do machismo e da misoginia amplamente propagados na TV aberta brasileira, sucessos musicais do mesmo (baixo) nível e mais alguns brutais registros de violência doméstica disponibilizados na internet nesta espécie de dossiê lamentável da objetificação (e daí para pior) de que são vítimas as mulheres dentro e fora da indústria cultural nacional. Além do significado famoso, autopsia serve também para descrever o exame atento de si mesmo, explicou a diretora. Por isso as imagens de arquivo falsamente envelhecidas são acompanhadas por uma performance de Ana Paula Pimenta diante do espelho. Simples, direta e fundamental, a obra é a neta feminista de Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho.
Lamparina da Aurora, de Frederico Machado - “O Guarnicê proporcionou minha estreia no Maranhão, foi o primeiro festival em que competi, em 1997 [Litania da Velha], foi o primeiro em que fui júri, o primeiro em que fiz curadoria, em que fiz debate...”, discursou um emocionado Frederico. E foi provavelmente por conta do carinho e respeito pelo filho talentoso da terra que ninguém arredou pé antes dos créditos finais – a inacessibilidade do longa provocou a debandada de espectadores no Festival de Tiradentes, relatou nosso representante à época. Eleito o melhor longa da mostra Olhos Livres do festival mineiro, o suspense envolve um casal de idosos, um forasteiro que parece filho, demônio e passado, e a natureza que cerca a morada dos protagonistas. Todo mundo morre e todo mundo volta nesta balada de leite e sangue (sexo e perigo) recheada de planos de cabeças e pés, totalmente onírica. Ninguém fala, cenas se repetem e poemas do falecido Nauro Machado, pai do realizador, são usados como supostos “nortes” da incompreensível trama. Apesar de tudo (tanto que resulta em nada), Buda Lira e Vera Leite despontam como favoritos aos prêmios de atuação e a incrível fotografia do próprio Machado, que lembra Lavoura Arcaica, é a melhor da competição de longas até agora. Lamparina da Aurora será lançado nos cinemas em novembro.
O AdoroCinema viajou a convite do Festival Guarnicê.