Não há assunto mais quente em Cannes ao longo desta primeira semana de festival que o conflito existente entre Netflix e a organização do evento. Pedro Almodóvar já se posicionou contrário à Palma de Ouro ser dada a um filme que não será lançado nos cinemas, o chefão Reed Hastings declarou que o mercado francês de cinema é contra a empresa, a própria Netflix foi vaiada pelos jornalistas assim que sua logomarca apareceu durante a exibição de Okja e até mesmo a Amazon, que nada tem a ver com o assunto, já recebeu uma vaia isolada na sessão de Sem Fôlego.
Mas, afinal de contas, por que tanto atrito envolvendo tantos envolvidos?
Como de hábito, o centro da questão está na decisão da Netflix em produzir conteúdos originais de forma a lançá-los exclusivamente em sua plataforma de streaming. Oficialmente, a empresa não se opõe que seus filmes sejam também exibidos em salas de cinema, desde que a estreia aconteça simultaneamente ao VOD. O que de imediato afasta possíveis interessados, devido à inexistência de exclusividade.
Tal decisão, estritamente comercial, acontece para que a Netflix alcance dois objetivos: ter em seu acervo um grande número de horas, de forma a prender o usuário o máximo de tempo possível, e incentivar a adoção de novos assinantes, já que apenas no streaming é possível assistir tal conteúdo. Simples assim.
Se tal reclamação é antiga, especialmente através dos exibidores estadunidenses que deixam de ter em seu acervo conteúdo atraente ao grande público, a novidade é que a organização do Festival de Cannes decidiu encampá-la, em defesa da experiência de ir ao cinema. Segundo o evento, é este o ambiente ideal para que um filme - qualquer filme - seja visto pelo público, graças às condições de imersão nele existentes. Ou seja, a Netflix seria uma empresa "contrária ao cinema".
Foi a partir desta situação que começaram os protestos durante o Festival de Cannes, que chegaram ao ápice com a vaia antes da exibição de Okja, tão logo apareceu a logomarca da empresa. É bem possível que o mesmo se repita neste domingo, duranta a sessão de The Meyerowitz Stories, segunda produção da Netflix no evento.
Dentro deste confronto ideológico existente sobre meios de se assistir filmes, a atriz Tilda Swinton levantou uma questão importante, durante a coletiva de Okja: "Vamos ser honestos, há centenas de filmes exibidos em Cannes que não são vistos no cinema."
É verdade. Analisando os filmes selecionados da mostra competitiva de 2016, sete ainda não estrearam nos cinemas brasileiros: Um Instante de Amor e Na Vertical, que tem distribuição assegurada, The Last Face, Bacalaureat, Loving, Ma'Rosa e Docinho da América. O último foi lançado diretamente na Netflix, adquirido após o festival do ano passado, enquanto os demais seguem sem previsão de estreia. Isto sem falar nas dezenas de filmes exibidos nas mostras paralelas Un Certain Regard, Semana da Crítica e Quinzena dos Realizadores.
Ou seja, por mais que o cinema seja o melhor local para se assistir a um filme, fato é que o mercado não consegue mais absorver tamanha produção. Sem lançamentos direto em home video, na TV por assinatura ou no streaming, o público interessado em tais longa-metragens acaba recorrendo à pirataria devido à absoluta impossibilidade de assisti-los de outra forma.
Pela presença de Okja e The Meyerowitz Stories em Cannes, além de outros filmes exibidos em festivais do porte de Veneza e Sundance, pode-se notar que a Netflix deseja explorar a inevitável vitrine mundial que os festivais oferecem. Resta saber se há interesse em negociar sobre o lançamento de seus filmes nos cinemas, ao menos no mercado francês - exigência do regulamento do Festival de Cannes 2018. Caso contrário, 2017 tende a ser o primeiro e último ano em que a empresa participará da seleção oficial.
Esta é uma novela que está apenas começando. Aguardemos os próximos capítulos...